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5 de jun. de 2019

VIVENDO O SONHO REALIZADO



Gerardo Hernández Nordelo aos 54: 
"Estou Vivendo o Sonho que realizei"




Fotos: Ismael Francisco


Por Arleen Rodriguez Derivet, 4 de Junho, 2019

Horas antes de cumprir 54 anos, ou "quarenta e sempre" como gosta de definir sua atual idade, Gerardo Hernández Nordelo, o homem que o império condenou a entregar duas vidas na prisão mais 15 anos, brinca com seus três filhos como mais uma criança , bem perto da praia. É seu quinto aniversário livre e brilha mais sorridente e sereno que nunca.

"Há pouco tempo, um grande amigo da infância dizia-me quem diria, que ias estar rodeado de filhos, com tua esposa...passando bem, desfrutando teu aniversário, com o  tanto que passaste atrás das grades? Era uma data que ninguém gostaria sequer de  recordar, porque paradoxalmente, quando chegava esse dia, ninguém queria nem lembrar que era seu aniversário. Mas minha vida deu uma mudança tremenda, para melhor.

A casa que ele e Adriana, com a ajuda de amigos e familiares, têm alugado perto do mar, parece um círculo infantil no horário de recreio. E na televisão só podem ser vistos bonequinhos. Não é tempo para adultos. Pergunto-lhe se esta era sua ideia do aniversário.

"Há que levá-los em conta para tudo. Antes se podia viajar um pouco mais longe, ir quiçá para o Escambray, a lugares que se gosta. Agora temos que ter em conta as crianças e tudo o que há que se levar, os diferentes interesses. Então viemos para aqui pertinho, a Santa Maria do Mar, com a família que é bastante extensa e tem estado passando por cá e passamos umas horas boas com as crianças na praia.
Lembra sua carta aos filhos por nascer e o medo de tê-los um pouco mais velho que os pais de outros meninos da mesma idade, mas já não parece lhe importar tanto.

"Nada disso, ao menos ainda que  posso acompanhá-los atirando-me  no chão com eles para brincar. As pessoas pergunta-me quantos anos tenho e lhes digo: nenhum. Eu os cumpro mas não os guardo (rsrsrsrsr).

Em quem (ou quais pessoas que não estão) pensarás ao amanhecer de 4 de junho,pergunto.

"Em meus pais. Primeiramente em minha mãe, esse ser humano excepcional que era, cheio de bondade e de bom humor e em meu pai, eles foram os que me deram a vida. Penso também em minha irmã falecida em 1998, nas pessoas que em certos momentos estiveram perto e já não estão. E, logicamente, penso nos que sim estão, nos que sempre, de uma maneira ou outra, me fazem chegar sua mensagem ou me acompanham e que são muitos felizmente, amigos e familiares.

"Mas, sobretudo, penso nas pessoas que fizeram possível que em um dia como hoje eu  esteja celebrando aqui com minha família. Tu sabes que o plano do império conosco era que este aniversário fosse um mais como tantos outros que passei na prisão.

"Se estou aqui devo aos esforços de muitíssimas pessoas,  muitas amigas  e amigos  de Cuba e do mundo que puseram seu grãozinho  de areia para que neste dia estivéssemos  desfrutando aqui como  estamos desfrutando, incluindo tu e tantos compatriotas que nos apoiaram de muitas maneiras.

Mas a prisão visita-o de vez em quando. Uma carta, um telefonema, uma lembrança...

"Faz em uns dias falei por telefone com Eladio Bouza, um cienfueguero que eu lembrava de quando cheguei a Lompoc - minha primeira prisão de segurança  máxima -  depois que nos condenaram em Miami e nos repartiram por cinco diferentes prisões. Eu chego a Lompoc na Califórnia e peço uma reunião com todos os cubanos para lhes explicar quem eu era e se alguém tinha algum problema com isso, deixar as coisas claras.

"Lembro que nessa reunião faltava somente um  cubano, Eladio, que estava trabalhando hora extra em uma fábrica da prisão. Quando eu digo quem sou, um deles de  Baracoa, a quem  chamavam de O Índio, comenta: "ah, vais se dar bem com Fantomas".

"Fantomas diziam a Eladio, era um cubano diante do qual não se podia falar mal de Cuba porque se enfezava. Era um preto alto, com um vozeirão tremendo e sempre estava discutindo em defesa de Cuba. Efetivamente, fizemos muito boas amizades na prisão, muito boas relações.

"Ele é um de tantos casos injustos, que estão cumprindo prisão  perpétua por uma bobeira, porque foi pego em algo que se chama a lei dos três erros  (strikes) ou lei de carreira criminosa, que diz que à terceira falta (condenação), não importa o que seja, te dão perpétua. Há pessoas cumprindo perpétua por roubar uma caixa de cigarros, simplesmente porque era sua terceira condenação.

Como o Jean Valjean de "Os miseráveis", lhe comento e confirma:

"Bouza leva quase 30 anos preso já. Chamou-me no outro dia e estivemos conversando um bom tempo.

"Mas faz pouco ocorreu algo com outro cubano, Israel Roque, de Chambas, em Ciego de Ávila. Conheci-o já em minha última etapa em prisão, em Victorville, Califórnia. Era uma pessoa mais idosa e sempre me dizia: "Quando eu sair quero regressar a Cuba, quero morrer em Cuba e descansar em Cuba".

"Quando eu deixei Victorville não soube mais dele. Até que faz uns dois  de meses, me escreve uma moça por Facebook e me diz: "eu sou Karina, a filha de Israel" e me manda uma foto dele com ela. Efetivamente, recordei que ele me falava muito de uma menina que tinha tido com uma mexicana, Karina.

Karina escreve-me: "Meu pai falava muito de vc. Eu sei que vc é uma boa pessoa. Ele tinha muito boa opinião de vc. E eu queria lhe dizer que quando ele saiu de prisão, ele sempre quis regressar a Cuba, mas foi para México e ali o surpreendeu a morte. Eu fui ao México, o velamos, o cremamos e tenho aqui as cinzas. Queria cumprir sua última vontade, mas eu não conheço nada de Cuba nem ninguém em Cuba. Sei que tem família, mas nunca tivemos contato.

"Então sugeri-lhe que buscasse uma carta antiga que tivesse algum endereço. E encontrou uma carta de muitos anos, com um endereço em Chambas. Aí, com a ajuda dos colegas da província, conseguimos localizar a família de Israel e levá-la a Karina.

"No outro dia reuni-me com ela porque veio com vários de seus filhos e com as cinzas de Israel. Não pude estar com eles em Ciego, mas sim nos encontramos quando chegou a Havana e aí nos saudamos. Foi minha maneira também de lhe render tributo a Israel que já, finalmente, descansa em Cuba.

Isto é, ainda não te desprendes do mundo da prisão...

"Não realmente não, mas não é algo que me pese fazer. Há pessoas que têm suas superstições e suas coisas e me dizem... No outro dia pus-me um relojinho plástico que vendiam na prisão e tem meu número por detrás e alguém me dizia: "se eu fosse você, jogava fora  tudo isso..."

"Realmente são lembranças. Esse tipo de superstições não as tenho, ao contrário, recebo cartas de meus antigos colegas de prisão, como do último que foi meu colega de cela, que está preso também injustamente por algo que não fez, um mexicano.

"E muitas pessoas que conheci na prisão, que depois se foram transferindo de prisões, mas me escrevem através dos colegas de Pathfinder. Enviam-lhes as cartas às vezes e eles as mandam por correio eletrônico. Mantenho contato com vários deles, que me mantém atualizado: "fulano saiu, a Mengano mudaram-no de prisão, o outro morreu..."

Seguem sendo parte de tuas relações humanas...

"E não me pesa. Não vejo como um passado que não quero recordar nem muito menos. Ao contrário, recordar o tempo que estive na prisão, me faz valorizar mais os esforços das pessoas que fizeram que hoje estejamos livres os Cinco. Não o vejo com pesar senão com alegria, como por dizer: "Do que me salvei" e sobretudo reconhecendo o esforço que custou que nos salvássemos, de tantas pessoas que contribuíram com isso.

Comento-lhe que, entre seus alunos do ISRI parece um mais. E pergunto-lhe se imaginou que esse seria seu destino.

"Não o imaginei, mas sim me satisfaz muito que essa tenha sido a tarefa que me deram. Tocou-me ser vice-reitor de Extensão Universitária, não docente, não de pesquisas, não de outro tipo. Felizmente foi Extensão Universitária, que leva menos tempo de teoria e bem mais tempo de prática, que é o que gosto em mim. Há que estar gerando ideias e se movendo constantemente. Parece que os jovens se sentem satisfeitos com o trabalho. Temos visto os resultados.

"Agora tive a honra de que me convidassem a fazer parte da delegação ao XVIII Congresso da OCLAE em Venezuela. Um convite que, segundo me disseram, partiu dos próprios estudantes. Para mim foi uma verdadeira honra estar ali com eles, ombro a ombro e ser testemunha da atitude assumida por nossos jovens em terras venezuelanas, a seriedade com que assumiram a tarefa de representar Cuba nesse Congresso.

"Quando escuto algumas opiniões pessimistas com relação à nossa juventude, recordo estes momentos: a atitude deles quando do falecimento de Fidel e estas vivências em Venezuela, e penso quanto são capazes de crescer, com quanta seriedade e com quanto compromisso com a Pátria assumem a cada tarefa que se lhes dá. Sinto-me realmente muito otimista com nossa juventude.

"Eu me graduei no ISRI, fui para Angola imediatamente e logo que regressei de Angola, já estava envolvido em minhas novas tarefas. De maneira que houve como uma ruptura bastante brusca com minha vida de estudante. E agora me sinto psicologicamente como se tivesse retomado esse momento de minha vida. Às vezes sinto-me como um estudante mais nesse instituto. Perguntaram-me se desejo fazer outra coisa, se tenho outros planos. Eu sempre digo que essa foi a tarefa que me deram e até que não me tirem daí, não me vou.

"A tarefa que te deram", isto é, não a escolheste. A escolherias agora, após experimentá-la?

"Penso que sim. Fizeram-me essa pergunta várias vezes quando regressamos. Algumas vezes mais formalmente e outras de maneira informal, me perguntavam o que queria fazer e eu sempre disse: "Não tenho nenhuma preferência mais que servir à Revolução. Sou um soldado da Revolução e onde me digam vou. A tarefa que me deem, assumo que é porque alguém considerou que podia  fazê-la bem e a isso dedico meus esforços, qualquer que esta seja". Tocou-me essa, desde então agradeço muitíssimo. Às vezes perguntaram-me se não desejo passar para o MINREX, etc. Eu sempre digo que estou bem ali, fazendo exatamente o que faço, como Vice-reitor de Extensão Universitária, com todas as atividades dos estudantes.

René escreveu um livro de três volumes, Ramón acaba de apresentar o seu. Gerardo não escreverá?

"Não duvido. Há muitos episódios, que a julgar pelas reações nos debates, são de interesse. As pessoas constantemente fazem-nos perguntas e ainda ficam muitas coisas por contar sobre gente que alguém conheceu na prisão, como te dizia, que se estudou seus casos e sabe que são inocentes, que estão cumprindo pena, porque caíram vítimas do sistema, que cometeram um erro quiçá, mas não um erro para lhe dar prisão perpétua, pessoas que alguém conheceu, que cometeram pequenos erros e depois se foram enredando no sistema, vivências também da solidariedade, de gestos bonitos que recebemos durante muitos anos e que vale a pena recordar, de modo que não descarto a possibilidade.

"Sou um pouco preguiçoso para escrever, mas não descarto que  algum dia faça um livro. Por agora, o que faço é que converso muito sobre esses temas nos lugares onde vou, que há debates, as pessoas nos fazem perguntas e eu os respondo conversando. Mas não duvido que algum dia o recolhamos em um livro, sobretudo para Gema e as crianças, para que não percam essa parte da vida do pai, que a tenham bem documentada.

"Gema e as crianças", há uma relação especial com ela?

"Bom sim, Gema porque foi a primeira e um pouco é o símbolo, não? Por mais que nós nos esforcemos para vê-la como é, uma simples menina de um casal cubano, muitas pessoas, com razão, também a veem como um símbolo, o símbolo da vitória na causa dos Cinco. Se  reuniram ali muitos esforços. Uniram-se muitas mãos para fazer possível que Gema esteja hoje conosco e que essa história nossa tivesse esse final feliz.

"E bom, estão os gêmeos também, obviamente. Eles também são fruto dessa solidariedade que os fez possíveis. E relações especiais, tenho com os três. Ainda que Gerardito tenha quebrado um pouco a tradição que diz que os varões são das mães e as fêmeas dos pais. Ele tem quebrado a tradição porque tem tremenda cumplicidade comigo (rri). Está super super apegado com o pai. Mas realmente e por sorte, com os três tenho uma relação muito linda, a cada qual com sua personalidade, porque os três têm personalidades diferentes.

"Gema é a mais...obviamente é a maior e a que mais conhecimentos tem, mas é digamos, a mestra e vai tendo seu gênio também. No outro dia disse-lhe que ela não era madura e me respondeu: "porque eu não sou uma banana", hahaha.

"Âmbar é, aparentemente, a mais terna, a mais caladinha, a mais tranquila, mas é a mais reflexiva e tem tremendo gênio. Saiu à mãe. Gerardito é o mais louquinho, o mais escandaloso, o que mais grita, mas é um pedaço de pão.

És realmente feliz?

"Sim, muito feliz. E agradeço a Adriana, que é uma excelente mãe e assume inteiramente os três, porque às vezes por questões do trabalho e demais atividades, não estou todo o dia com eles como ela. Ela assumiu todo o ônus da atenção aos filhos e o fez de maneira excelente.

Deu-se alguma informação sobre a filmagem de um ou dois filmes sobre o Caso dos Cinco?

"Sim, há vários projetos. Há um filme, baseado no livro de (Fernando) Morais "Os últimos soldados da Guerra Fria", que tem tido cobertura mediática pelos atores de primeira linha que conseguiram, como Penélope Cruz, Gael García Bernal, Javier Bardem...mas paradoxalmente, não temos tido muitos vínculos com eles. Não sei se com intenção ou não, eles não têm querido se misturar muito.

"O único que quis conhecer a pessoa que ia interpretar, foi Gael García Bernal. Conhecemo-nos, almoçamos juntos, é muito boa pessoa, por verdadeiro. Mas na realidade não tem tido muito vínculo. Tinha mais vínculo com um projeto de uns canadenses que ia ter como referência o livro de (Stephen) Kimber, que acho que mudou um pouco e agora será uma série sobre acontecimentos importantes do processo revolucionário, e um ou dois capítulos estarão dedicados ao caso dos Cinco.

"Mas há outros projetos. Há um livro-disco precioso, a cargo de Waldo Mendoza, com cartas de Adriana e minhas durante a época em prisão. É como um projeto que ele fez recentemente com cartas de Bolívar e Manuelita. Temos a honra Adriana e eu de que agora faça algo similar conosco e com canções preciosas em que participam como convidados outros artistas.

"Há um video-clip em preparação com uma canção formosíssima de César López, dedicada também a Adriana e a mim que a interpreta com Lua Manzanares. "Na janela da alma" chama-se e acho que vai ser o primeiro video-clip de César e é uma honra que seja com um tema dedicado a nós.

Durante a entrevista, que Cubadebate publicará integralmente na próxima semana, falamos também de sua experiência como deputado, do próximo 6 de junho, aniversário do MININT e dos sonhos pendentes:

"Sempre me considerarei membro do Ministério do Interior -disse com naturalidade e orgulho- Foi um privilégio muito grande, como cubano, ter a oportunidade de cumprir uma missão como a que cumprimos. Conhecendo tantos heróis anônimos e heroínas anônimas, que a seu tempo fizeram trabalhos parecidos ou  fazem ou  farão, para nós é um compromisso celebrar uma data como esta.

"Meu sonho era sair e depois assumir o que viesse. A cada vez que me perguntavam quais são teus planos, eu sempre dizia: "meu plano é ter meus filhos, minha esposa...Como ser humano, o meu sonho é levantar pela manhã e dedicar o dia a atender a meus filhos, a minhas plantas e a meus animais, que são bastantes. Para isso tenho  24 horas e possivelmente não baste.

"Como sabes, tenho um pequeno zoológico: frangos, patos, tartarugas, até abelhas tenho agora. Estou de apicultor. Esse é meu sonho: dedicar meu tempo, minha vida, a recolher os ovos das galinhas e essas coisas. O que acontece é que como revolucionários sabemos que sempre há outras tarefas e outras responsabilidades e outras coisas que fazer e há que cumprir. Realmente aspirações: ser útil é a única. Onde se considere. Isso eu disse desde que pus um pé em Cuba e é o que tenho feito e tenho cumprido. E isso não tem variado. Se amanhã me dizem que tenho que ir do ISRI para outro lugar, o farei com gosto de novo. Somos soldados da Revolução. E a ela nos devemos.

Faço questão de insistir na questão do que ele tem como sonhos por realizar e ele insiste também na resposta:

Talvez eu não tenha muitos sonhos, porque realizei os que tinha. Que mais vou sonhar após estar aqui com minha esposa, com meus três filhos e rodeado de familiares e amigos que me querem? A realidade excedeu todas minhas expectativas e meus sonhos. Em termos de sonho, não teria muitas mais coisas que conseguir. Às vezes estou sentado ou deitado no chão com as crianças, olhando-os e parece-me mentira. E penso: daí para lá não há mais nada. Após esta felicidade que alguém vive com seus filhos, em sua pátria, após ter vivido a experiência que vivemos que durou 16 anos, seria um pouco egoísta seguir sonhando.

Hoje estou vivendo o sonho que já realizei e  desfrutando–o.









 Comitê Internacional Paz Justiça e Dignidade aos Povos


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