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1 de dez. de 2019

BOLÍVIA



BOLÍVIA: A CONFRARIA FASCISTA E O BANQUETE TRANSITÓRIO (PARTE I)

 Quem governa este país onde agora têm o direito de se matar índios impunemente ou perseguir mulheres de saias sem piedade? Quem constitui o núcleo duro desta nova casta encomendada que mata por um prato de lentilhas? A onde se dirige este governo que carrega o ódio em nome de Deus em cada canto?



Por Ernesto Eterno
A cena mais crua que retrata a natureza do governo transitório que leva o selo de um regime fascista sem piedade se produziu em La Paz em 21 de novembro, nas proximidades da Praça São Francisco, cerca de 16:30. Nem os meios de comunicação mais ligados a este grupo de desalmados têm conseguido esconder tamanha afronta à condição humana e à dor dos familiares e amigos dos mortos.
A população da cidade do Alto que tinha decidido descer a La Paz com seus mortos sobre os ombros, mostrar ao mundo inteiro o que o cerco mediático estava ocultando sobre o massacre de Senkata , sofreu um brutal ataque policial-militar. Os marchantes foram reprimidos com tal fúria que os enlutados tiveram que deixar os caixões  de seus mortos na solidão dolorosa da rua sob o risco  de serem  pisoteados pelos tanques e pelas tropas de ocupação colonial, em  meio a nuvens tóxicas de gás de pimenta e balas disparadas com rancor de verdugos.
Esta cena inaudita sobre a greve tem toda explicação expressa na radiografia de um regime que está disposto a preservar o poder roubado do povo à custa de cometer as maiores atrocidades em matéria de direitos humanos. A mão repressiva do atual regime de fato é superior em crueldade à pior ditadura que viveu o povo boliviano ao longo de toda sua história.
Certamente chegaram ao governo para tomar o poder sem limite algum. Acham que estão no meio de um banquete e desfrutam-no avidamente. O desfile dos mortos não interrompe seu êxtase. Também não é suficiente o menu de violência para saciar seus apetites insanos.Tudo lhes serve para cumprir sua promessa de vingança e honrar a obediência a seus amos. Não se detêm ante nada, pelo contrário, disparam abjetamente contra as vítimas, a quem acusam de se ter se matado entre eles e se mostrar como «hordas alcoolizadas» em um gesto de desprezo repugnante. A população rebelde que protesta nas ruas contra um regime golpista e sua infâmia sangrenta tem sido reduzida a «hordas», isto é, a grupos de vândalos, sujos e fedorentos que merecem o desprezo da sociedade pura, impoluta e prolixa.
As hordas selvagens são as que matam ou as que morrem? Mais que investigações forenses para esclarecer estes banhos de sangue, faz falta uma antropologia da bestialidade entre quem conduz hoje o país. Estiveram disfarçados durante longos treze anos esperando, na vigília da noite, este segundo que desfrutam como se fosse eterno. Sua longa espera hoje se sente compensada com o sangue que brota de trinta corpos massacrados a bala. Uma jornada  sangrenta que não cessa porque ainda não parece ser suficiente. Quantos mortos  mais freará sua sede de glória política para redobrar suas forças repressoras? Quantos índios mais terão que ofertar sua vida no altar desta confraria de ódio?
Mais que um bando de assaltantes que se chamam “governo de transição” parece que enfrentamos  uma manada descontrolada  que  despeja ferozmente seus instintos. Nunca uma transição política se conduziu com tanto sangue derramado contra bolivianos. Isto representa o mandato que os impulsiona a matar sem piedade e a mentir sem clemência. A televisão os mostra como animais treinados e dispostos a obedecer tarefas primárias que provem de sentimentos quase primitivos. Pedir-lhes que pensem no que fazem por um só segundo é demasiado. Nem remotamente lhes ocorre pensar na nação que têm entre suas mãos ou na sociedade a que devem enfrentar sem armas.
Este bando não tem tempo nem condições para pensar a vida dos seres humanos. Seu oficio tormentoso é a privação dela. Obedecem ordens que provem de fora e consignas elaboradas para seu próprio consolo. Tratam de localizar o país onde vivem, mas se refugiam no país que querem. Sabem que o tempo se lhes escapa e por isso enfrentam com sanha demente os que denominam «hordas de massas” , como para justificar sua brutalidade  mas também para conjurar o rancor profundo que os envolve. Não possuem ideias para se pensar como governo, mal atinam a se excitar quando  sentem que são poder.
Este é um governo não só fascista porque mata ou reprime sem perguntar. É desapiedadamente fascista porque sabe que mata com a legitimidade que circula na classe média que tem decidido mediar para saciar sua sede de vingança. A classe média racista requer de verdugos que os representem em sua descarnada voracidade. O ódio aos índios converteu-se não só em uma moda geracional, também em um passatempo das tertúlias fascistas. No entanto, os fariseus do ódio falam de democracia.
A nova gramática farisaica não deixa de lado os adjetivos associados ao aniquilamento. Por isso, é uma classe que está disposta a deixar passar todas as mortes necessárias porque são índios. Para esta classe ancorada no lastro racista dos séculos, essas massas indígenas, despojadas do poder e do líder que encarnou parte de seus sonhos, merecem qualquer tipo de castigo, inclusive a morte. Devem pagar a culpa de sua ousadia: ter se atrevido a substituir por um longo tempo a quem se crê os donos genuínos e insubstituíveis do poder. Poucas vezes esses donos perderam o direito de governar, e, quando o fizeram, as massas pagaram um preço muito alto: fuzilaram  Willka , suicidaram  Busch, penduraram  Villarroel, assassinaram  Tórrez  e derrubaram  Evo. É uma classe que não aceita concorrência na arte do ter tudo sem ser nem o merecer. Por isso, o golpe de 12 de novembro mais se parece a uma estratégia de castigo.
Quem governa este país no qual os brancos agora têm o direito de matar índios impunemente ou perseguir mulheres de saias sem piedade? Quem constitui o núcleo duro desta nova casta de senhores que mata por um prato de lentilhas? A onde se dirige este governo que carrega o ódio em nome de Deus em cada canto?
Desde logo  diremos que este é um governo cuja arquitetura política e força repressiva, incluída a parafernália mediática e de redes, está pensado em Washington para ser executado por uma nova casta senhorial  cuja tarefa é varrer todo vestígio “populista”. Lapidar as “massas”, ampliar as esferas de sua morte civil e fragmentar sua potência popular mediante a perseguição política ou a judicialização  são as tarefas que encarna este regime  que  caracteriza o massacre. Na condição de sua transitoriedade arraiga sua potência repressiva e desde ali pretende se passar, via eleitoral, à fase sustentável de um novo modelo de ditadura com rosto democrático. Por isso, não será uma simples casualidade a volta deliberada da USAID nem da DEA, ou, pior, da CIA. Esta engrenagem criminosa contribuirá a otimizar a roupagem  democrática.
Sem dúvida, no palco que se precipita pela força do chumbo não fará falta gente honrada para encher o vazio de poder. O projeto neocolonial de poder não passa pela decência política senão pelo descaramento. A primeira personagem desta tragédia já tem as mãos manchadas de sangue, e tanto Camacho como Mesa são os novos comensais do banquete imperial.

Jeanine Añez, a autodeclarada

O governo fascista nasce destas entranhas sórdidas expondo seus tentáculos grotescos desde sua condição de classe. Parecem personagens saídos de historietas grotescas. Uma presidenta branca, católica, oriental e iracunda que não hesita em pedir que os índios, andinos ou amazônicos, sejam expulsos de sua terra para conjurar seus ritos satânicos longe de seu luxo. Alguém que detesta sentar com um índio, que o proscreve somente por sua diversidade ou que despreza a presença da whipala, que é um símbolo do novo Estado Plurinacional, que renasce dos escombros da colônia, diz hoje representar a Bolívia. Uma senadora que mal conseguiu 40.000 votos dirige hoje a vontade de 11 milhões de pessoas.
A presidenta autodeclarada chegou sem prévio aviso. Nenhuma comunidade, nenhum grêmio, nenhum clube esportivo, nenhuma cooperativa, nada nem ninguém foi consultado para que Jeanine Añez fosse presidenta. Levaram-na escoltada à Assembleia Plurinacional, ingressou triunfante sem batalha alguma e mantém-se inalterável apesar da quantidade de mortos. Sente que está predestinada a mandar como o célebre Guaidó, o venezuelano, que também se crê presidente pelo só fato de ser ungido pelo Tio Sam, desde a cloaca de Washington. Estes personagens histriônicos só podem ser um subproduto de galeras pestilentas.
A Jeanine , a breve, criaram-lhe  uma oportunidade excepcional e lhe abriram o caminho para fazer o que se lhe ordene. Seu principal atributo é a obediência cega, e por isso dispõe de um exército e uma polícia de gatilho fácil. Como os jogos de magia, a tiraram do sombreiro em Washington com a cumplicidade sossegada de Tuto Quiroga, um líder político fracassado, e Luis Fernando Camacho, o líder religioso construído para o mal. Quiroga é um verdadeiro mago da política fascista e do dinheiro sujo. Não para com sua mania de se expressar cantinflescamente, por redes e televisão, contra qualquer vestígio de democracia popular. Seus vínculos com a matilha de senadores cubanos entrincheirados em Miami, junto ao criminoso de Sánchez Berzaín, protegido da CIA, e sua relação com o mais escabroso do paramilitarismo colombiano, converteram-no em uma peça chave dos Estados Unidos durante estes últimos cinco anos.
Quiroga, junto a Oscar Ortiz, o candidato perdedor das «mãos limpas» da última eleição, foram os operadores do golpe de Estado de 2007-2008 sob  a batuta de Philipe  Goldbergh, o embaixador carniceiro que hoje preside outros tantos atentados desde Bogotá. Quiroga, Ortiz, Berzaín e Camacho foram os eleitos para a glória de pirro. Desta vez retornaram com mais recursos, tecnologia e uma estratégia política e mediática demolidora da mão da OEA. Há mais de uma década estes nomes ocupam um lugar privilegiado nas listas da CIA. No entanto, o oficio comum é o de fazer desaparecer milhões de dólares que generosamente lhes outorga sua agência mãe a cada vez que prometem derrotar a Evo. Desta vez foi diferente. A fortuna pôs-se a seu lado alimentada pelos milhões de dólares que fluíram da caixa criminosa da CIA e seus comparsas.
A autodeclarada e este séquito real sabem que o banquete do poder usurpado tem em os dias contados. No entanto, essa brevidade converteu-a em uma carniceira desalmada, a primeira de seu gênero em toda nossa história. Nunca uma mulher tinha chegado tão longe permitindo que se massacrasse  a sangue frio a tantos jovens aos que lhes privou do direito a sonhar. Nunca dantes uma mulher tinha comandado um açougue humano como em Ovejuyo, Sacava ou Senkata. Curiosamente, compartilha junto a seu ministro de Governo um desejo irrefreável de perseguir, caçar e destruir. Ao que parece não é um mal de gênero, ambos são um gênero do mal.
Curiosamente, Añez é uma mulher que nasceu nos belos pampas benianos que só oferecem beleza e esplendor. Estranha referência para a mulher mojeña-amazônica que terá em seu inventário histórico uma golpista e por sua vez uma genocida. Na verdade, esta é uma vergonhosa referência para um povo hospitaleiro, modesto e generoso em seus costumes.
Em sua breve genealogia política, o general Banzer surge como seu pai ideológico. Uma peça chave na galeria dos ditadores sanguinários latino-americanos. Talvez inspirada nesta instância ruinosa para a nação, a «eleita» se mostra fria, ambiciosa, delirante em sua ferocidade de classe. Manda desde a  cadeira presidencial com a mesmo arrogância  com que os patrões de fazendas decidem violar suas empregadas. Fazem-no para marcar seu território, como os animais quando depositam suas sujeiras para prevenir intrusos.

Añez está ligada ao pensamento mais conservador e racista de outro tutor político: Ernesto Suárez. Um ex-militante banzerista, convertido em um próspero latifundiário, construiu sua fortuna com a miséria de seu povo. Suárez Sattori descende de um pai militar protofascista para quem os peões de sua estância valem menos que suas vacas. Entre Suárez e Añez existe uma comunhão não só ideológica, senão também senhorial. Añez crê, como a maioria dos padrões de estância, que não é um delito violar as filhas dos peões. É uma violação merecida, quase como uma honra, aceder à violência carnal dos donos da terra e do gado. É sua quota de sangue. Este direito patronal é semelhante ao direito  que ainda praticam os padres corruptos e pedófilos nas extensas savanas benianas. Patrão e padre são duas espécies que vivem prostrados ante o delito e a cumplicidade no pecado. Desta casta perversa provem a autoproclamada  presidenta. Nascida perto da dor da violação e da cumplicidade de uma igreja que faz missa para os que violam.
Não é pura casualidade que quem atue hoje de mediador no conflito entre o regime, os movimentos sociais e o governo derrotado sejam representantes da Igreja católica, aquela cuja elite goza de todos os foros, inclusive o da pedofilia. Essa parte obscura da Igreja que se diz mediadora é a mesma que atuou nas missas dos domingos condenando sistematicamente a Evo e seu governo. É a mesma que durante os últimos anos canalizou financiamento da USAID para alimentar o golpe fascista, é a mesma que se converteu na trincheira antipopular desde suas fundações de fachada, manchadas com sangue dos pobres: Fundação Jubileo, Cáritas, ERBOL e outras. A presidenta autoproclamada é filha predileta desta Igreja que nos domingos lhe rende culto à hipocrisia e à barbárie patronal.
Quem a elegeu tinha a segurança de que a presidenta autoproclamada cumpriria o mandato de governar matando. O séquito fascista celebra que as «hordas» agora tenham o que merecem, incluída esta Igreja que indiretamente oficia o fascismo por sua cumplicidade política. Celebram a mulher católica que reza mas que também mata.
Por muito tempo, na Bolívia e no resto de América Latina a Igreja leva no ventre toda a podridão do Império e o pecado de seus testas-de-ferro. Hoje mesmo enfrentamos  uma parte da Igreja católica que atenta contra a liberdade e o bem-estar de um povo que começava a caminhar, a se eleger a si mesmo, a traçar seu próprio destino para além dos erros humanos que o governo pôde cometer por sua imperícia ou por seu voluntarismo inefável.
Por conseguinte, Añez resulta ser o vértice de uma maquinaria criminosa que hoje está sustentada em quatro patas, a cada uma delas com seus próprios interesses corporativos, religiosos, estrangeiros e empresariais. A primeira delas, o Ministério da Presidência, de linha fortemente camachista; a segunda, sustentada nos ministérios de Governo e Defesa, de filiação estrangeira; a terceira, que alimenta a projeção internacional e uma economia de troca neoliberal; e a quarta, a complementar, que atua como retoque (maquiagem) ou legitimação do absurdo.





Tradução: Comitê Carioca de Solidariedade a Cuba


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