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13 de fev. de 2020

Conversa com um cientista em noite de chuva (em artigo da IELA)


CUBA E O CORONAVÍRUS - Um dos medicamentos que está sendo usado com sucesso contra o coronavírus na China é o interferon alfa 2 b, produzido pelos cubanos. Em 2009 o Iela recebeu o médico Manoel Limonta, um dos responsáveis pela pesquisa do interferon. Vale recordar a conversa que a jornalista Raquel Moysés teve com ele contando sobre como Cuba iniciou o trabalho em biotecnologia a partir das ideias visionárias de Fidel. Hoje, apesar do criminoso bloqueio dos Estados Unidos Cuba segue, estudando, criando e salvando vidas.


01.06.2009 - Noite de chuva em Florianópolis. Na Universidade Federal de Santa Catarina, no pequeno auditório do Centro Sócio-Econômico,  um cientista abre as guardas da linguagem fechada da biotecnologia para um grupo que veio de guarda-chuvas e sombrinha em punho beber na fonte da história de uma nação que dá o que falar em todo o mundo. Manoel Limonta, um médico cubano, que 27 vezes já pisou terras de Brasis, conta como a sua ilha caribenha ganha respeito internacional, pelos avanços científicos e tecnológicos alcançados,  registrando patentes dentro e fora  de seu território.

O jeito de Limonta explicar o mundo complexo da ciência é como o curso de um rio de águas transparentes.  Homem de gestos serenos, esse professor da Universidade de Havana  dissipa dúvidas e dialoga com o público, predominante de faces juvenis, que veio ao lugar  atraído pelo convite do Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA).
            
Ao narrar e imprimir na memória de cada atento ouvinte as passadas de uma saga nacional, ele vai reconstruindo um cenário que descortina a épica de seu povo. São fatos ocultados pela  mídia dominante, mas o fato é que hoje Cuba vive  em grande parte   do desenvolvimento científico e tecnológico  que alcançou,  e que  o bloqueio feroz, promovido pelos Estados Unidos,  não conseguiu esmagar.

Encontro com o comandante
A biotecnologia, no país já chamado ilha de Fidel,  é atualmente o terceiro ou quarto item  da economia para garantir o PIB cubano. E nessa história, tudo começa mesmo  com a intervenção pessoal de Fidel Castro, ao cruzar a vida do  então jovem pesquisador Manoel Limonta, médico hematologista  apaixonado pela pesquisa.  Naquele ano,  de 1981, ele  fazia estudos com novos medicamentos de uso regulado, quando   foi buscado por um emissário de Fidel,  que lhe disse: - O comandante quer falar com você.
Surpreendido pela convocação, ele foi encaminhado à presença do presidente, que logo lhe pediu: - Fale-me o que sabe sobre o interferon.  Naquela época, recorda Limonta, falava-se muito de um medicamento, a base de interferon, obtido através dos glóbulos brancos do sangue, para combater enfermidades virais. Acreditava-se até que curaria o câncer. E Fidel, grande devorador de livros e  leitor atento de assuntos ligados à medicina,  tivera notícias dessas pesquisas em andamento,   e estava decidido a que o interferon pudesse ser produzido em Cuba.
Limonta conta esta passagem de sua história pessoal  para comentar como o fato de estar no dia certo, no local certo, pode mudar o curso de uma história individual e influenciar a vida  de  uma comunidade humana.  “Tive esta sorte histórica,   e comecei a trabalhar nas pesquisas com interferon, contando com um apoio extraordinário do governo cubano.” Depois de ir estudar, com mais um colega,  nos Estados Unidos, e com outros cinco,  na Finlândia, onde os estudos com interferon estavam em alta,  de volta à ilha,  ele e o grupo,  ganharam uma casa,  que foi logo transformada em laboratório.
Epopéia científica
Num período de 48 dias, os pesquisadores viveram  uma epopéia científica, passando esse tempo praticamente trancados entre as paredes do lugar. Limonta conta que chegou a ficar 18 dias sem ir em casa, pois,  ao fim de cada jornada extenuante,  não tinha forças sequer  para dirigir o carro. Fidel vinha quase todo o dia encontrar o grupo, e dava força para que resistissem ao cansaço e se nutrissem da paixão que os movia. O cientista  ainda relembra as palavras de Fidel: “O comandante nos dizia: - Não podemos parar,  quando de nosso trabalho depende a vida de tantas pessoas.”
E assim foi. Depois de 48 dias – dos  quais   42 deles  Fidel compareceu  ao laboratório  – na data de 28 de maio de 1981, nascia o interferon cubano. Os capítulos seguintes desta história científica seguem sem interrupções. Depois deste primeiro resultado,  nasce em Cuba o Centro de Investigações Biológicas, construído em um prazo de seis meses, e onde continuou acelerado o processo de estudos de engenharia biomédica.  “Da mesma forma como o engenheiro civil desenha uma ponte, nós trabalhávamos sem parar para construir estruturas químicas,  usando as ferramentas da engenharia genética,” explica, usando metáforas simples de cientista que se quer fazer entender.
Do interferon, as pesquisas foram caminhando por outras vias,    até que, em 1986, se erigia,  em Havana,  o Centro de Engenharia Genética e Biotecnologia, com 74mil m2, localizado   em uma área de 15 hectares. Ali, seguiram  avançando as técnicas cubanas, e surgindo novos produtos, como, por exemplo,  a vacina  contra a hepatite B.  Nesses tempos de efervescência criativa, apareceram também institutos para pesquisas e produção de  vacinas e o Centro de Imunologia Molecular, que desenvolveu uma vacina para combater o câncer, ajudando pacientes em tratamento de quimioterapia e radioterapia. 
Lutar ou morrer de fome
Para atender as  necessidades da população cubana, de pouco mais  de 11 milhões de habitantes,  bastava, contudo,    pouco tempo de produção e,  assim, conta Limonta,  Cuba passou a exportar os produtos do seu desenvolvimento científico e tecnológico, entre eles  a vacina para combater a meningite meningocócica do tipo B. Agora, como lembra o cientista, já há,  na lista dessa épica trajetória científica, uma variedade de produtos e pelo menos duas dezenas de  patentes registradas dentro e fora do território cubano, hoje até nos Estados Unidos.
Cuba começou do nada, e construiu uma história de superação, com muito trabalho, vontade, inovação e invenção,  insiste em lembrar Limonta.   “O bloqueio, algo muito ruim, tem pelo menos essa faceta ‘boa’, pois vem representando um fator de motivação. Não tínhamos outra escolha. Era morrer  de fome ou lutar para nos manter vivos, com esforço e dignidade.”


Quando trabalhou em pesquisas nos Estados Unidos, Limonta lembra que  solicitava um reagente, e à tarde o produto já chegava ao laboratório. Em Cuba, uma nação bloqueada para o mundo, é  preciso esperar seis meses e ainda pagar duas ou três vezes mais o preço da substância ou equipamento.

Limonta recorda situações absurdas provocadas pelo bloqueio implacável.  Houve até um episódio em que  Cuba dispunha de vacinas, que não eram produzidas nos Estados Unidos, e foi impedida de salvar vidas naquele país, porque o governo estadunidense não permitiu a importação do medicamento, preferindo deixar gente morrer por falta de tratamento.
Cooperação fora da ilha

Hoje, Cuba vive  em boa parte  do desenvolvimento científico e tecnológico, que deixou para trás o mito de um país que sobrevive de charuto, e açúcar e turismo. Vários países, como o Brasil, recebem tecnologia cubana, e a  ilha também fabrica produtos biotecnológicos  através de acordos de cooperação, diretamente em  nações, como China, Índia e Irã. “Não se trata de transnacionais”, esclarece Limonta.  Nós nos associamos    para levar  além de nossas fronteiras   o   desenvolvimento tecnológico e tecnológico que alcançamos.”
Limonta afirma que  Cuba viveu uma etapa muita dura para chegar a tal ponto e manter este patamar de desenvolvimento, Mas, atualmente “está em um lugar elevado de respeito no mundo, oferecendo produtos com alto valor agregado.”  
Romper o  contexto histórico de dominação,   não é coisa fácil, comenta o professor.  “ Nós, do terceiro mundo, nunca participamos de uma revolução científica mundial,  e é difícil quebrar esta situação. “É claro que um produto  fabricado na Alemanha é visto pelo mercado com outros olhos em relação a um produto cubano. Um país de negros”, talvez pensem, mesmo que não digam...”, conjectura Limonta.


O médico não esconde o orgulho que sente de seu país, onde a pessoa é protegida do nascimento à morte, pois em Cuba, quando alguém morre, nessa hora difícil, “tudo é de graça.”  Lá,  ele esclarece,  os salários são baixos, mas a pessoa,    se fica doente, tem a certeza de contar com a máxima atenção médica. A cultura também é muito expandida,  e a educação é  assegurada, nas condições mais impensáveis, até em lugares remotos. E Limonta,  dá o seu testemunho: - Conheço uma escola, em que há dois alunos e quatro professores. Isto porque, em Cuba, a educação é  uma política de Estado.
Limonta diz  claramente que não recrimina cubanos que saem do país por motivos econômicos, porque  querem salários melhores ou sonham em ser ricos. “Em muitos  casos, quando você conversa com essas pessoas, elas não são contrárias ao que se faz em Cuba, elas estão de acordo com aquilo que é feito para  todos.”



E assim,  numa noite de chuva, esse doutor cubano, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Havana, abriu as portas de um mundo fantástico de conhecimentos para um grupo que saltou poças d’água nos caminhos do campus para encontrá-lo. Ele já recebeu títulos de doutor honoris, é membro de  academias de ciências como a Third World Academy of Sciences – TWAS, é   consultor e coordena projetos de pesquisas aplicadas à biotecnologia em diversas instituições, além de ser do  conselho editorial de várias revistas científicas.  Limonta,  porém, demonstra ser,  principalmente,  um intelectual público, disposto a estar no meio da comunidade para compartilhar seu saber e a contar a história de seu povo, protagonista de uma revolução, como ele mesmo também é.   

Com nossos sinceros agradecimentos à IELA . Texto publicado :  https://iela.ufsc.br/noticia/conversa-com-um-cientista-em-noite-de-chuva?fbclid=IwAR0JlU_PKNuUQUa0b32aGVF2QqZpwMYm2w4_yl-fkXIAvEAgbD6JlsGAAH8




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