ÍNDICE

28 de dez. de 2020

DESIGUALDADE EM CUBA. PROJEÇÕES A PARTIR DO CONSUMO ELÉTRICO


Autor: Liu Mok


  A distribuição da renda e a desigualdade foram e são um assunto medular em qualquer intento de construir uma sociedade mais justa e equitativa. Em relação à desigualdade, Marx mostrava, no Manifesto Comunista, como “[…] a concentração dos capitais e da propriedade industrial […], as desigualdades irritantes na distribuição da riqueza, tal […] processo tinha de conduzir, por força lógica, a um regime de centralização política […] porque […] aglomera a população, centraliza os meios de produção e concentra a propriedade em mãos de poucos” (Marx e Engels, 1970). Esse aviso precoce sobre a crescente concentração do capital sob o capitalismo foi corroborado, de forma empírica (Banco Mundial, 2019).

         As análises da desigualdade em nível mundial indicam a ineficiência do modelo de desenvolvimento capitalista para resolver esse flagelo. A desigualdade cresceu no mundo de forma constante desde o início do século XIX até a crise de 2008. Foi nesse momento que se conseguiu a primeira queda da desigualdade em nível mundial, entre 2008 e 2013, o índice de Gini1 teve uma diminuição de cinco pontos percentuais. Muitos viram nisso a prova definitiva da infalibilidade do capitalismo, por considerar resolvido o assunto de que maior prosperidade traz consigo a convergência entre os distintos níveis de renda, e que se avança na redução das assimetrias, mas não foi assim.

         O principal motor dessa redução da desigualdade foi um projeto de construção socialista: a China (Banco Mundial, 2019). Esse país, sozinho, foi responsável por 60% (OIT, 2018) do incremento mundial do salário médio nas últimas décadas e contribuiu para tirar 850 milhões de pessoas da pobreza (Banco Mundial, 2020). Dessa forma, os tais resultados estão longe de poderem ser atribuídos ao sistema capitalista e, sim, podem ser associados à constante preocupação dos sistemas socialistas por atingir modelos equitativos e prósperos.

         No caso cubano, o tema foi deixado a interpretações e estimativas pessoais, sem respaldo numérico, por muitos anos2. Esse vazio de informação oficial foi preenchido pelas mais fantasiosas teorias da conspiração e o ajuste numérico por parte de alguns mal-intencionados, no seu afã de sustentar sua crítica contra Cuba e seu modelo. A Revolução passou por muita coisa, desde o último Gini, publicado nos anos 80: a queda do bloco socialista, que gerou uma redução do PIB cubano em cerca de 35%, mais os impactos nocivos do bloqueio, que recrudesce ano a ano e que, por cada incremento porcentual no seu custo anual, impulsiona uma redução do PIB cubano entre 0,87% e 1,17% (Mok, 2017). Essa mesma política estadunidense vem buscando impedir, com mais força desde 2019, todas as formas de ingresso de divisas à economia cubana, seja atacando os principais itens exportáveis cubanos, a entrada de investimento estrangeiro direto ou as remessas que o país recebe. Tudo isso, enquanto sua maquinaria midiática se encarrega de ressaltar, como justificativa, uma possibilidade que permite a Cuba, ainda que não de forma fácil, adquirir “à vista” certo grupo de bens de consumo e medicamentos. Obviamente, a soma dessas medidas – bloqueio das escassas fontes de receitas e pagamento à vista de importações – permite entrever a verdadeira intenção da estratégia estadunidense, que busca deixar Cuba sem divisas.

         Todo esse complexo entorno, em 2020, foi agravado por uma pandemia mundial que fez o mundo enfrentar o cenário econômico mais complexo dos últimos anos. A Cuba, economia pequena e altamente dependente do comércio internacional, que se empenha em pôr o bem-estar do povo à frente de economicismos, provocou um prejuízo maior. Não é corriqueiro, portanto, retomar o estudo da desigualdade em Cuba. A utilidade deste estudo ultrapassa as necessárias comparações. Para Cuba, deve ser, além disso, uma forma de introspecção, de análise interna e de reafirmação de para onde vamos.

         Por outro lado, os impactos do bloqueio sobre a desigualdade, embora tenham sido atenuados pelo Governo cubano, se fizeram sentir, sobretudo nas últimas décadas. O ataque ao comércio exterior cubano gerou a necessidade de explorar novos métodos no campo econômico, que poderiam gerar desigualdade a curto e médio prazos. Paralelamente, a vocação para a proteção do trabalhador em Cuba impediu que se aplicassem, ante conjunturas adversas, receitas neoliberais de demissões em massa, pelo contrário, garantiu-se o direito ao emprego até nos momentos mais complexos.

         Não obstante, isso gera perigosos desequilíbrios financeiros, que provocaram vários problemas para as finanças internas cubanas. A dolarização da economia nos anos 90, a dupla moeda para começar a desdolarização, os tipos de câmbio múltiplos, a segmentação de mercados, todas foram medidas conjunturais tomadas pelos Governo cubano, para enfrentar situações extremas criadas pelo bloqueio, afetando o mínimo possível a qualidade de vida das pessoas. Um efeito indesejável dessas medidas conjunturais foi o perceptível incremento da desigualdade, comparada com a que existia antes do fim do bloco socialista.

                         Foto: Irene Pérez

         Atualmente, e em meio a uma difícil situação econômica, empreendeu-se a tarefa do ordenamento monetário. Um assunto complexo e sem previsibilidade total dos resultados, sobretudo na arquitetura econômica cubana. Esta tarefa de ordenamento coloca a unificação de tipos de câmbio, como base para começar o caminho do crescimento sustentável, o incremento de salários e a redução de subsídios. Conseguirá, de imediato, eliminar distorções nos registros contábeis e econômicos, eliminar transferência quase fiscais, subsídios implícitos a importações e gravames a exportações, que partiam de um tipo de câmbio supervalorizado do peso cubano para o circuito empresarial. Neste contexto, foram sendo oferecidas informações relevantes para fomentar o debate e contribuição do povo à construção conjunta da estratégia nacional de desenvolvimento.

         Entre as informações publicadas, encontra-se a distribuição por categorias do consumo elétrico nos lares de Cuba. Esta oportunidade pareceria única para retomar as estimativas da desigualdade, utilizando o consumo elétrico como aproximação ao nível de renda ou riqueza. Desta forma, os distintos estratos de consumo elétrico conformam os distintos níveis de renda das famílias. A informação utilizada para os cálculos foi extraída do site Cubadebate1.


        Os estudos que correlacionam o Índice de Gini com distintas variáveis não são novos no âmbito acadêmico. Assim, por exemplo, encontrou-se uma forte relação entre o coeficiente de Gini e o crime, em distintas variantes (Hsieh & Pugh, 1993), (Fajnzylber, Lederman & Loayza, Determinants of crime rates in Latin America and the world: an empirical assessment, 1998), (Daly, Wilson & Vasdev, 2001), (Fajnzylber, Lederman & Loayza, Inequality and violent crime, 2002), (Kim, Seo & Hong, 2020). O raciocínio por trás desses estudos é que a forte correlação existente entre Gini e crime está dada por uma relação de causalidade, em que maior desigualdade tende a causar maior incidência do crime. Este resultado foi verificado empiricamente, tanto dentro dos países, como entre eles. Neste sentido, e tomando os índices de Cuba e da região (Escritório das Nações Unidas contra a droga e o delito, 2020), é possível considerar que o posicionamento de Cuba é bastante positivo. A baixa incidência de crime e os altos níveis de segurança em Cuba são referência internacional e um relevante elemento em seu caráter atrativo ao turismo.

 

Vítimas de homicídio, quantidade e taxa

por cada 100.000 habitantes em 2016


País

Fonte

Quantidade

Taxa

Chile

CTS/OAS

620

3,5

Cuba

MD/MOH

572

5,0

Equador

OAS/CTS

959

5,9

Argentina

CTS

2.605

5,9

Bolívia

CTS

686

6,3

Uruguai

MOI/CTS

265

7,7

Costa Rica

UNSDC/MOJ/CTS

578

11,9

Guiana

OAS/CTS/NSO

142

18,4

Porto Rico

NP/NSO

679

18,5

México

NSO

24.559

19,3

Colômbia

UNSDC/OAS/CTS

12.402

25,5

Guatemala

UNSDC/NP/CTS

4.520

27,3

Brasil

MD Adjusted/NGO

61.283

29,5

Jamaica

OAS/CTS

1.354

47,0

Honduras

OCAVI/NSO/CTS

5.150

56,5

El Salvador

OAS/CTS/RSC

5.257

82,8

Fonte: Escritório das Nações Unidas contra a droga e o delito

     A estimativa realizada neste trabalho, por seu lado, tem dois pressupostos básicos. O primeiro, como se mencionou anteriormente, é que o consumo elétrico é uma variável altamente correlacionada com o nível de renda das famílias, ou “a riqueza”, se desejamos usar um termo mais amplo e associado “a stock”, em vez de “a fluxo”. A evidência empírica internacional parece respaldar amplamente esta suposição (de Rezende Francisco, Aranha, Zambaldi & Goldszmidt, 2007), (Medina Moral & Vicens Otero, 2011), (Castillo, Peña & Guardián, 2016). O raciocínio por trás do pressuposto é que, em geral, as famílias restringem seu orçamento para o consumo elétrico, segundo a possibilidade oferecida por sua renda, pelo que variações nesta última implicam um ajuste do primeiro. Por outro lado, a quantidade de aparelhos consumidores de energia, que determinam, em um sentido amplo, a riqueza, também dependeria dos fluxos de receita que a família é capaz de economizar e converter em “stocks”.

         O segundo pressuposto assume que o consumo médio de cada uma das categorias é precisamente a média de seus limites mínimo e máximo. Embora isso possa estar ou não próximo dos valores reais, este estudo não tem pretensões de chegar à perfeição no cálculo, mas chegar a um resultado inicial fundamentado e lógico, tendo em conta informação real.

      A partir dos pressupostos anteriores, realizou-se uma estimativa do Gini para Cuba. O valor obtido foi de 37.4, um resultado positivo, se consideramos uma comparação internacional.

                                   Fonte: Elaboração própria, (Banco Mundial, 2020) e (CEPAL, 2019)

       O país melhor da região mais bem situado no ranking mundial de desigualdade é o Canadá com 31.2, o país seguinte da região, e por abaixo de 0.40, é o Uruguai, com 39.7. Nesta comparação, pode-se apreciar, em sua verdadeira dimensão, o que significa, para um país como Cuba, em meio a todas as suas complexidades, manter resultados tão alentadores em termos de desigualdade. Podemos obter informação adicional da representação gráfica (Curva de Lorenz[i]) desse valor de desigualdade em Cuba.

           
  Fonte: Elaboração própria

           O gráfico representa a distribuição do consumo, que assumimos diretamente relacionado à renda das diversas famílias. O eixo da “X” mostra a porcentagem de população em cada categoria de consumo elétrico, enquanto que o eixo “Y” reflete a porcentagem de consumo que concentra cada categoria. O nível perfeito de igualdade, representado pela linha laranja, ilustra quando, por exemplo, 50% das famílias consomem 50% da energia. Neste caso particular, pode-se dizer que cerca de 40% dos consumidores mais baixos representam 15% do consumo total; ou que 3,1% dos mais altos consumidores consomem o mesmo que 37,9% dos mais baixos.

         O objetivo não deve ser apenas conseguir que os maiores consumidores diminuam seu consumo, o que é importante para o país neste momento, mas gerar as condições para que os menores consumidores possam dispor dos recursos, mediante a redistribuição, para incrementar seu consumo, também sobre bases racionais.

         Ademais, esses excedentes que se captam dos maiores consumidores, após a redistribuição, poderiam ser utilizados para ajudar a financiar uma maior penetração das fontes renováveis de energia na matriz energética nacional e reduzir assim os custos da eletricidade para todos. Embora não seja o objetivo deste artigo abordar o assunto dos novos preços da eletricidade e se são justos ou não, sim fica claro que a marcante diferença no consumo entre os distintos grupos deve recair, em termos de tarifas, sobre os mais altos consumidores com mais força que sobre os mais baixos.

         Os resultados obtidos dão sinais de que ainda há muito por fazer e alcançar em matéria de igualdade e justiça social, mas é também um indicador de que não estamos descarrilhados como nos querem fazer crer. É também um sinal de que, inclusive nos momentos mais complexos, em Cuba não se deixa ninguém desamparado. Entretanto não devemos assumir isto como um pedestal para ficarmos imóveis, a meta socialista de reduzir a desigualdade ao mínimo é também a nossa meta. As medidas atuais têm necessariamente de apontar a um crescimento produtivo em primeiro lugar, não há socialismo se só se distribui pobreza. O Socialismo é a distribuição da prosperidade, e não há prosperidade sem incremento sustentado da produção. Por outro lado também não há Socialismo, se o crescimento da produção é tomado como único critério para a política econômica.


Referências

1.      Banco Mundial. (2019). Obtido de https://www.bancomundial.org/es/topic/poverty/

lac-equity-lab1/income-inequality

2.      Banco Mundial. (2020). Obtido de https://datos.bancomundial.org/indicador/SI.POV.GINI?locations=CA

3.      Banco Mundial. (2020). Obtido de https://www.worldbank.org/en/country/china/overview

4.      Castillo, A. E., Peña, L. S., & Guardián, G. P. (2016). Hogares y energía eléctrica en México. Revista Espinhaço, 30-43.

5.      CEPAL. (2019). Panorama Social de América Latina 2019. CEPAL.

6.      Daly, M., Wilson, M., & Vasdev, S. (2001). Income inequality and homicide rates in Canada and the United States. Canadian J. Criminology, 43, 219.

7.      de Rezende Francisco, E., Aranha, F., Zambaldi, F., & Goldszmidt, R. (2007). Electricity consumption as a predictor of household income: a spatial statistics approach. En Advances in geoinformatics (págs. 267-282). Springer, Berlin, Heidelberg.

8.      Fajnzylber, P., Lederman, D., & Loayza, N. (1998). Determinants of crime rates in Latin America and the world: an empirical assessment. The World Bank.

9.      Fajnzylber, P., Lederman, D., & Loayza, N. (2002). Inequality and violent crime. The journal of Law and Economics, 45(1), 1-39.

10.  Hsieh, C. C., & Pugh, M. D. (1993). Poverty, income inequality, and violent crime: a meta-analysis of recent aggregate data studies. Criminal justice review, 18(2), 182-202.

11.  Kim, B., Seo, C., & Hong, Y. O. (2020). A systematic review and meta-analysis of income inequality and crime in Europe: Do places matter? European Journal on Criminal Policy and Research, 1-24.

12.  Marx, K., & Engels, F. (1970). El Manifiesto Comunista. Moscú: Editorial Progreso.

13.  Medina Moral, E., & Vicens Otero, J. (2011). Factores determinantes de la demanda eléctrica de los hogares en España: una aproximación mediante regresión cuantílica. En Estudios de economía aplicada.

14.  Mok, L. (2017). Crecimiento Económico en Cuba: principales aspectos. Cuba: investigación económica, 23(1 y 2), 12-14.

15.  Oficina de las Naciones Unidas contra la droga y el delito. (Diciembre de 2020). Obtenido de https://dataunodc.un.org/crime/intentional-homicide-victims

16.  OIT. (2018). Global Wage Report 2018/19: What Lies Behind Gender Pay Gaps


[i]             A Curva de Lorenz é utilizada geralmente para a representação gráfica da desigualdade em um determinado domínio. Cada ponto na curva representa uma porcentagem acumulativa dos valores do domínio. Portanto, o ponto (0;0) representa o 0% do gráfico, enquanto que o ponto (1;1) representa o 100%.150


Tradução: Comitê Carioca de Solidariedade a Cuba

https://lapupilainsomne.wordpress.com/2020/12/22/desigualdad-en-cuba-estimaciones-a-partir-del-consumo-electrico-por-liu-mok/


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