Roberto Amaral*
“Aparentemente,
a sociedade civil global, que no passado obteve avanços significativos e
demonstrou comprometimento com a justiça na Palestina, precisa trabalhar ainda
mais duro em solidariedade ao movimento nacional palestino, que busca
desesperadamente – e, até aqui, em vão – atuar de forma coesa para frustrar a
próxima tentativa estadunidense-israelense de destruir a Palestina e os
palestinos.” – Ilan Pappe, Dez mitos sobre Israel
(2021)
Elemento essencial do
conceito de guerra é o confronto de exércitos, assim designadas as fileiras de
profissionais adestrados para o ofício de enfrentar e matar quem seu comandante
indica como inimigo a eliminar, ou território a conquistar ou preservar. O
inimigo da vez pode ter sido um aliado de ontem, um antigo vizinho, ou mesmo um
irmão de sangue. Como o inimigo de ontem pode tornar-se o grande aliado
estratégico de hoje: o Japão da II Guerra Mundial, inimigo mortal abatido com a
violência da bomba atômica, é hoje um dos principais aliados estratégicos dos
EUA.
Os judeus, como os
árabes, mais do que outros povos, conhecem essa danação. No Oriente Médio
presente, porém, embora haja judeus perseguidores e árabes perseguidos, não há
guerra, eis que não há confronto de tropas, não há embate entre guerreiros,
senão o puro e simples massacre de populações civis, indefesas e por definição
desarmadas, na sua maioria gente idosa, mulheres e crianças, contra as quais
ruge e vomita bombas um exército luciferino comandado pelo ódio; um exército
todavia moderno, excepcionalmente equipado, armado até os dentes pelo que há de
mais mortífero na tecnologia fria da indústria da morte.
A luta entre tropas
militares e civis desarmados não é guerra, mas, simplesmente massacre sem
sursis, pois sua essência é mistura de vindita e covardia. Mais ainda quando os
alvos preferidos são centros médicos, escolas e campos de refugiados. Segundo
as estatísticas possíveis nas circunstâncias, já morreram mais de 40 mil
palestinos desde o primeiro ataque israelense a Gaza que foi reduzida à
condição de terra-arrasada, um monturo de nada. Conta-se em torno de 1,7 milhão
o número de desabrigados.
Na retaguarda de Israel,
hoje um fora-da-lei, pois nenhuma lei ou código, ou tradição de convivência
internacional respeita, está o mais poderoso Estado beligerante já conhecido
pela humanidade, o mais longevo dos impérios (militar, econômico, tecnológico e
cultural) registrados pela idade moderna: os EUA. Um país, aliás, tanto quanto
o Estado israelense, muito afeito aos massacres de civis e à rapina de terras
estrangeiras: os mexicanos no final do século XIX perderam para seu vizinho
algo como 2,3 milhões de km², ou seja, 55% de seu território. O desprezo pela
vida humana conhece seu extremo no final da II Guerra Mundial, quando duas
bombas atômicas massacraram as populações civis de Hiroshima e Nagasaki, no
Japão.
Na “guerra da Coreia”,
invadida pelos EUA com o respaldo da ONU em 1950, morreram 2 milhões de civis.
Por fim, mas não fechando o ciclo que compreende ainda um sem-número de guerras
de caráter colonialista espalhadas pelos quatro cantos da Terra – como as
invasões do Afeganistão e do Iraque, a guerra do Vietnã é o grande destaque da
história contemporânea. A agressão dos EUA, iniciada em 1965 e só encerrada em
1975 com a queda de Saigon, custou as vidas de 2 milhões de civis. O império,
que desesperadamente luta pela hegemonia mundial que conheceu entre o fim da
Guerra Fria e a emergência da China, encontra no Estado-tampão de Israel o
aliado perfeito.
Na verdade, suas
políticas de guerra se completam, desempenhando, cada uma segundo suas
características e circunstâncias, papel estratégico na atual política de guerra
do dito Ocidente: 1) a guarda do Oriente Médio por Israel; 2) a guarda da
Europa (governada majoritariamente por partidos protofascistas) e a contenção
da Rússia, pela OTAN; 3) o Japão, virtual porta-aviões do Pentágono posto a
vigiar a China, e, por fim, 4) os próprios EUA, policiando o mundo, com suas
cerca de 800 bases militares em mais de 70 países.
Não é obra do acaso que
desde 1947, quando, para existir, ocupou parte da Palestina, o Estado de Israel
tenha tomado para si a Cisjordânia, o Sinai e as colinas de Golã, e ainda
administra ou controla cerca de 85% dos territórios originários da Palestina.
Em nome de sua “autodefesa” Israel destruiu a possibilidade do Estado palestino
– a contraparte da ONU para o Estado judeu. Atendendo a interesses próprios de
Estado de alma colonialista, de que decorrem o belicismo e a fome de
territórios (um dos pontos em que Israel e EUA se encontram com a Alemanha de
Hitler, obcecada com seu Lebensraum), o Estado sionista mata civis em Gaza, na
Cisjordânia, no Líbano, no Iêmen, voltou a matar na Síria e voltará a matar no
Irã e onde mais se fizer necessário à geopolítica da destruição. Em quase todos
os eventos agindo como procurador do imperialismo.
A OTAN não é peça ausente
nesta arquitetura. Sob o comando estratégico e os recursos militares, táticos e
financeiros dos EUA, cumpre papel crucial no conflito Ucrânia-Rússia, que traz
a Europa e uma grande potência nuclear para o epicentro da crise. Ao mesmo
passo em que garante um enclave bélico nas fronteiras da antiga república
soviética, a presença da OTAN logra paralisar em seu território aquele que já
foi considerado o maior exército do mundo, e que hoje guarda o paiol do maior
estoque de ogivas nucleares.
Esses conflitos são
cruciais para o Pentágono, pois constituem peças decisivas no projeto (de vida
ou de morte) estadunidense: recuperar a
hegemonia mundial, mesmo que ao preço de um conflito que, hoje, para o bem e
para o mal, sabemos como começa e já podemos prever como terminará. Podemos,
mesmo, anunciar como será seu sucessor: “Eu não sei com quais armas a Terceira
Guerra Mundial será lutada, mas a Quarta Guerra Mundial será travada com paus e
pedras” (Albert Einstein. Liberal Judaism, 1949).
A lenta decadência do
império ainda cobrará sacrifícios impensáveis à humanidade. Roma, desta feita,
se prepara para a guerra. O confronto de nossos dias tem na sua antessala a
explosão do Oriente Médio, projeto que remonta aos idos do imperialismo britânico;
o atual teatro de operações deve estender-se em pouco tempo, e toda guerra,
antes da paz, é a mãe de outra, como a II Guerra Mundial foi o desdobramento
inevitável do conflito desencadeado em 1914.
Por isso, o conflito
Rússia-Ucrânia jamais se circunscreveu aos dois países, e logo se transformou
no embate EUA-OTAN versus Rússia, com os olhos dos EUA voltados para a ameaça
real: a emergência de uma Eurásia liderada por uma China industrializada, em condições
de pleitear o cetro da hegemonia mundial.
A imprensa brasileira,
perdidamente parcial, porta-voz que é da Hasbará (a máquina de propaganda do
enclave sionista), noticia a invasão do Líbano como se estivéssemos diante de
uma gincana de fim de semana. Não se dá ao dever de informar que se trata de
mais uma agressão ao território de um país soberano, como foi, na sequência, a
incursão dos bombardeiros na Síria, violando as regras da convivência
internacional e a Carta das Nações Unidas, que não se peja em desrespeitar,
como desrespeita a Corte Internacional de Justiça.
O desafio de Israel à
chamada comunidade internacional se expressa, ainda, pelo desplante com que seu
chanceler declarou persona non grata no Estado ninguém menos que o
secretário-geral da ONU.
O objeto da violência
sionista, armada e financiada pelos EUA, não é a legítima defesa de um Estado
ameaçado, posto que sabidamente o Estado-tampão de Israel não o é; ameaçada, e,
ademais, ocupada, é a Cisjordânia, é parte de Jerusalém e para tal tragédia
parece condenado o Líbano.
Sob o terror
estadunidense-israelense, Gaza foi reduzida a escombros; e desde o primeiro dia
da agressão sionista seu povo, indefeso, à míngua da solidariedade
internacional, é exterminado a sangue-frio: fuzilado, bombardeado, mutilado,
deixado à míngua de assistência médica, privado de comida, de medicamentos, de
eletricidade, de água. A fúria luciferina não se detém diante de hospitais e
escolas. Seus mortos são civis que não oferecem combate ao agressor, nem sequer
esboçam o legítimo direito à resistência (anatemizado como terrorismo pela
imprensa ocidental, macaqueada pela brasileira).
Matar o desarmado é
covardia, mesmo segundo os códigos de honra dos marginais. Matar de tocaia, sem
dar ao outro o direito de defesa é, ademais, crime hediondo. Mas o sionismo não
está só; sabidamente dispõe de apoio bélico, político, logístico, econômico,
estratégico e tecnológico dos EUA, de quem recebe respaldo absoluto, diante uma
comunidade internacional cúmplice e de uma ONU sem qualquer serventia, que,
quando muito, protesta nas redes sociais. Ao seu lado, a União Europeia e a
direita hidrófoba de todos os quadrantes. Esta de hoje, é filha do nazifascismo
que nos legou a II Guerra Mundial, com seu inventário de miséria que chega aos
nossos dias.
A Europa – agora com a significativa adesão da Áustria – começa a fechar o círculo do avanço da extrema-direita. A ascensão do protofascismo e o ímpeto das políticas de guerra não podem ser vistos como fatos isolados. Desse veneno a humanidade já provou.
Se a peça de hoje, cujo enredo também detestamos, não é a mesma de ontem, e
nunca é, o diferencial de hoje é que alguns atores trocaram de papel. Os
alemães também invadiram seus vizinhos porque alegadamente precisavam de
“espaço vital”, isto é, mais terras e mais recursos para levar a cabo o projeto
do III Reich: assim, foram avançando, invadindo, anexando: Renânia, Áustria,
Tchecoslováquia, Polônia... Hoje, Israel tenta justificar seu expansionismo em
nome da necessidade de mais território para assegurar-se de sua defesa.
Não há guerra no Oriente Médio. Mas naquele barril de pólvora chafurdado pelos grandes impérios coloniais, hoje protetorados político-militares dos EUA, pode estar sendo gestado o próximo grande conflito, certamente universal, porque já envolve a economia mundial, e tem presença efetiva em todos os continentes, seja na versão clássica, seja na versão conhecida como guerra híbrida, que já nos atinge.
* Com a colaboração de Pedro Amaral
edição: @comitecarioca21
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