19/05/2016
Criada em 2007 pelo então presidente venezuelano Hugo
Chávez, a Escola Latino-americana de Medicina (Elam) possibilita que
pessoas pobres de países periféricos se tornem médicos
Aos 21 anos, Jéssica Rodrigues Trindade não pensava que um dia
poderia cursar uma faculdade de Medicina. O Brasil mantém um perfil
elitizado na formação médica, com apenas 2,6% de negros entre os
formados na área, em um território onde a maioria da população se
declara como negra ou parda (53%), segundo dados do Instituto Nacional
de Estudos e Pesquisas (Inep). Mas não foi em uma escola brasileira que a
assentada da reforma agrária e filha de camponeses pobres do estado do
Pará quebrou esse paradigma.
Jéssica faz parte de um grupo de cerca de 250 jovens de 32 países de
diversas partes do mundo que estudam na Escola Latino-americana de
Medicina (Elam), na Venezuela. “Eu que sou negra, pobre, filha de pobre,
vejo agora toda minha família vibrando pelo fato de eu estar aqui. As
gerações da minha família não tiveram acesso à educação e entrar em
Medicina é ainda mais complicado”, conta Jéssica, assentada no Palmares
II, na cidade de Parauapebas (PA).
Criada em 2007 pelo então presidente venezuelano, Hugo Chávez, em
parceira com Cuba, a Elam busca formar médicos de diversos países que
tem carência na área. “Esse é um objetivo primordial da escola: formar
médicos – que não teriam a possibilidade de estudar em seus países – não
só na ciência, mas também em consciência, porque são médicos que
voltarão aos seus países para dar um retorno aos seus povos, cuidando
das doenças e dos problemas que seus países enfrentam”, explica o cubano
Arturo Pulga, médico e coordenador acadêmico da Elam na Venezuela.
É dessa maneira que o conceito metodológico e pedagógico pensado pela
escola se diferencia do que é compreendido pela medicina convencional.
“Se você vai atender o povo tem que ser uma medicina comunitária, por
isso formamos médicos integrais comunitários, que vão à comunidade
atender aos problemas dela. Um aspecto social fundamental é que essa
medicina não é apenas para curar doenças, mas para preveni-las”, destaca
Pulga.
Logo quando chegam à Elam, todos os estudantes participam de um curso
introdutório de cerca de seis meses para nivelar o conhecimento sobre
diversas áreas, como matemática, biologia, química e também sobre o
pensamento latino-americano. Depois desse processo, eles ingressam na
formação da carreira médica pelos dois anos seguintes, coordenado por um
corpo docente de venezuelanos e cubanos.
Nesse período, os estudantes já começam a trabalhar nos Centros de
Diagnósticos Integrais (CDIs) das comunidades, o equivalente às unidades
básicas de saúde no Brasil, onde entram em contato com os moradores nos
bairros carentes e praticam o conteúdo teórico que aprendem na sala de
aula.
“Esse é um elemento importante dessa medicina, pois desde o primeiro
ano os estudantes se vinculam com os pacientes nas comunidades. É uma
diferença fundamental do modelo tradicional. Desde o primeiro dia que
eles entram aqui, já têm vinculação com a prática, nos lugares onde
estão as comunidades, os mais pobres, os mais necessitados”, relata
Pulga.
Experiência
Uma das coisas que mais chamaram a atenção de Jéssica ao chegar na
Venezuela foi o fato de a maior parte da população daquele país ter
acesso à saúde básica por meio dos CDIs. “Em um simples bairro, você tem
médicos para todas as áreas. A pessoa chega e já faz o atendimento”,
conta.
Quanto às aulas práticas nos CDIs, a sem-terra destaca a importância
desses momentos, pois eles permitem a troca de experiências. “Conversamos com os médicos cubanos sobre o trabalho deles. É muito boa
essa troca, porque você vê uma medicina diferente, você vê que eles
realmente estão preocupados com as pessoas”, avalia.
Esse, por sinal, é um dos fatores que mais instiga Jéssica a se
dedicar à profissão. Segundo ela, são poucos os médicos no Brasil que se
preocupam de fato com o paciente. “Às vezes o paciente não necessita de
remédio, só precisa que se converse, sabe? Quando se tem a compreensão
que o outro também passa necessidade, isso ajuda muito. Por isso essa
medicina é diferente, é importante se preocupar com o outro e contribuir
a partir do que você sabe. Isso é gratificante”, declarou.
Formação
Após os dois primeiros anos de faculdade, os estudantes se
descentralizam entre os estados venezuelanos e se incorporam aos centros
hospitalares e ambulatórios, onde ficam do terceiro ao sexto ano do
curso até se tornarem efetivamente médicos profissionais.
Segundo Pulga, está cientificamente provado que 80% das doenças podem
ser diagnosticadas a partir da atenção primária de saúde, de um
questionário adequado que se leve em conta as pessoas e o meio social
delas, considerando o local onde estudam, trabalham, etc.
“Por isso [esta formação] tem paradigmas diferentes da medicina
tradicional. É uma medicina muito contemporânea em relação ao atual
momento e as dificuldades dos nossos países, sobretudo, os
latino-americanos, que tem dificuldades econômicas e uma população muito
grande que necessita da atenção médica”, defende o coordenador.
Perspectivas
Quando os estudantes são questionados sobre o que pretendem fazer
depois de passar por esse processo formativo, as respostas são
praticamente as mesmas: o retorno para a terra de origem para cuidar “do
povo”.
Vinda de Tabocas, uma cidade de 11 mil habitantes no oeste da Bahia,
Soraya de Souza Santana, 21 anos, do Movimento das Mulheres Camponesas
(MMC) pretende rearticular um conhecimento popular que foi se perdendo
com o tempo na sua região.
“No tempo em que eu nasci, as mulheres que ajudavam uma as outras,
faziam os partos, visitavam, buscavam alimentos para as crianças, davam
multi-mistura para ajudá-las na nutrição. Eu tenho a perspectiva de
resgatar algumas dessas coisas que foram se perdendo com o tempo”,
aponta.
Apesar de recém-chegada à Venezuela, Jéssica não vê a hora de poder
voltar e ajudar a população com o que aprenderá nos próximos seis anos.
“Quero contribuir com quem fez que eu estivesse aqui: a luta do povo.
Algumas pessoas que não compreendem isso, falam que eu estou aqui por
mérito. Não, o mérito não é meu, o mérito é do meu povo. Foi ele que
lutou para eu estar aqui. Tem toda uma América Latina em luta, isso aqui
não é uma escola qualquer”, destacou.
Por Luiz Felipe Albuquerque
Do Saúde Popular, enviado especial à Venezuela
Publicado por Saúde Popular
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