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Roberto Amaral*
Estamos a 61 anos do golpe de 1º de abril de 1964, e a 40
anos do fim da ditadura. Mesmo após a reconstitucionalização, o regime
castrense sobreviveu como bedel do país democratizado. Graças a um pacto
transacionado nos salões de Brasília, imunes aos sons do povo nas ruas,
elegemos Tancredo Neves para dar posse a José Sarney, o último grande líder
civil do partido da ditadura. Assim, ingressamos na frustrada “Nova República”
e chegamos à Constituinte de 1988, condicionada pela concordata com os militares
— acordo que compreendia veto à Constituinte ordinária (que nos permitiria
passar o país a limpo), veto à revisão da anistia capenga (que só beneficiava
os criminosos), veto ao julgamento dos crimes da caserna e, cereja do bolo, o
infame art. 142, ditado pelo general Pires Gonçalves, estafeta designado pela
caserna para vigiar os trabalhos dos parlamentares. Foi assim que nasceu a
“Constituição Cidadã” do dr. Ulysses, um belo projeto que vem sendo
continuadamente desconstituído, dilapidado — seja pelo neoliberalismo voraz,
seja pela direita em seu largo espectro.
Há sempre um ponto de partida, por óbvio, para a análise do
processo histórico, e o nosso é o mantra da conciliação — pai e mãe da
impunidade, pai e mãe de todos os golpes intentados e perpetrados contra a
democracia. Otávio Mangabeira, falando nos tempos em que os liberais tinham o
que dizer, comparava a democracia a uma “planta tenra que precisa ser regada
todos os dias para que não morra”, porque entre nós — ontem como hoje — ela é
ameaçada por um reacionarismo larvar, antissocial e antinacional, fundamentalmente
autoritário, velho como a Sé de Braga, porque nos persegue desde sempre e não
se desapega de nossa História, sustando o futuro. Como faz no momento presente.
Quando não apela à violência — como nos sucessivos golpes de
Estado que fazem nossa história desde o nascimento do Império —, a classe
dominante impõe a conciliação, inventada para impedir não só qualquer arte de
ruptura, mas qualquer mudança — salvo aquela engendrada para que nada mude.
Ao sabor das circunstâncias, a vontade supostamente
majoritária da sociedade brasileira vinha mantendo de pé a luta democrática,
respeitosa dos ritos e das regras do sistema, padecendo derrotas, mas aqui e
ali logrando, ainda que em vezes raras, algum progresso social — à mercê,
porém, da maldição de recuar dois passos sempre que logra caminhar um à frente.
Passam as águas da política sob a ponte da história, mas
parece que foi ontem o golpe parlamentar de 2016, porque ainda convivemos com
suas consequências, que nos abraçam e nos ameaçam com sua presença num
horizonte a perder de vista — se nos faltarem as forças de que carecemos para
enfrentar a ofensiva política e organizacional da onda neofascista. Ou se
continuarmos, por falsa defesa, minimizando a letalidade do adversário. A
extrema-direita é articulada internacionalmente, inclusive por meio do ramo neopentecostal,
mas outro erro fatal — embora fale ao espírito dos tíbios — é reduzir o
fenômeno nacional (o progresso das legiões fascistas) a simples manifestação do
quadro internacional, aguçado de último pela consagração norte-americana de
Trump. É a teorização do “não há o que fazer”.
Em 1985, e mais ainda em 1988, pago o preço humano
conhecido, havíamos retomado os trilhos da democracia descarrilhada em 1964.
Caminhamos segundo as regras da conciliação, mediante avanços e recuos — mais
recuos do que avanços (trágica sina!) — e chegámos a um estranho 2018, que
ainda não conseguimos explicar.
Segue-se, daquele então até aqui, uma penca de recuos
políticos, atingindo os interesses populares e restringindo os espaços — mesmo
os mais formais — da democracia possível.
Ainda incomoda a persistente lembrança do quatriênio da
extrema-direita — no poder pelo voto, em pleito legítimo —, e a intentona do 8
de janeiro de 2023 veio lembrar, aos que têm olhos para ver o indesejável, o
avanço do projeto de poder do fascismo caboclo. Trata-se de avanço notável, que
se revela num plano de organização política e material, nacional e
internacional, desconhecido entre nós, porque agora sustentado em bases
populares e eleitorais que falaram em 2018 e 2022 — e já rosnam olhando para 2026.
Frustrados os projetos da esquerda mais moderada (e já não
registro o arquivo a que foram condenadas as esperanças socialistas, sonho de
uma militância em recesso), o presente nos assalta com maus presságios.
A eleição de Lula — pelos seus números e pelas dificuldades
da governança, que o passar do tempo só agrava — é ponto de alívio e
advertência, para nos ajudar a medir o tamanho e o peso do adversário que não
ensarilhou as armas. Não é uma posição de conforto. Ademais, é momento que
requer reflexão.
Como, porém, conservar as posições atuais e avançar — conditio
sine qua non para sua sobrevivência política — se o governo (fruto de uma
coalizão eleitoralmente necessária, mas heterodoxa tanto do ponto de vista
político quanto ideológico) carece de um projeto político, regente de um
programa de governo? Se a política nacional, de um ponto de vista progressista,
padece anomia letal? Se o chamado campo das esquerdas se imola na doença senil
do imobilismo, cedendo espaços políticos e ideológicos às forças do atraso,
deixando-nos como herança perversa a contingência de defensores das
instituições e da ordem?
As contingências roubaram-nos o ardor revolucionário; um
certo oportunismo nos levou a esquecer nossas teses fundamentais — como a
denúncia do sistema e a contestação da ordem. Mesmo a esquerda socialista
parece haver retirado de sua bandeira a denúncia da iniquidade que é o
capitalismo em si.
Não está mais no vocabulário da militância a miséria da
exploração do trabalho.
Discutimos teses importadas de nossos adversários, cuidamos
de ajuste fiscal. Pouco nos referimos à concentração de renda e, quando ela
entra em nossos discursos, chega desapartada da indispensável denúncia de suas
causas. Tratamos o fim da impunidade dos golpes — que pode mudar os rumos da
República — como uma questão processual adstrita ao STF e ao seu plenário de
capas pretas. Não vamos à rua para dar respaldo ao processo e não temos força
(ou será ânimo?) para a mobilização popular contra a impunidade, ora batizada
de “anistia”.
Os riscos são os de sempre. A caserna se conserva como
instrumento de conservação do status quo, mas o cenário de hoje — agravado pelo
quadro internacional — lembra os riscos de 1937 e 1964. Não há propriamente
incompletudes, mas há muito o que fazer. E o fazer é resistir para avançar,
olhando para o grande objetivo: retomar o comando do processo histórico.
Aliás, a história da democracia na República não é um lago sereno. Jamais foi. Sérgio Buarque de Holanda já nos disse que “a democracia entre nós foi sempre um mal-entendido” — e ele se referia à democracia política. A democracia social, aquela que deve ser o leitmotiv da esquerda, não é entre nós apenas um mal-entendido, mas o fantasma que a classe dominante forceja por exorcizar — sem medir o preço a pagar, mormente agora, quando suas velas são enfunadas pelo vento quente que nos chega dos EUA, animando os reacionários de todos os naipes, no mundo inteiro.
A batalha de Glauber Braga na Câmara
Prepara-se, na pior legislatura da história da Câmara dos
Deputados, um dos mais graves atentados contra a democracia e contra o
princípio que a justifica: a soberania popular. No chamado Conselho de Ética —
chorume político-parlamentar que nos avilta — articula-se a cassação
encomendada do mandato do deputado fluminense Glauber Braga.
As razões são as do lobo, consagradas na fábula de La
Fontaine. A motivação — mais que tudo uma vendeta — é política. Mas trata-se da
pequena política, da política de várzea, que expressa interesses mesquinhos e
inconfessáveis dos “coronéis” de paletó e gravata e da direita de todos os
jaezes, grupos e grupelhos que infestam e controlam o poder legislativo,
abastardando-o. É a política do atraso: atraso econômico, atraso social, atraso ético e aviltamento moral; a política
que se alimenta do “orçamento secreto”, da manipulação de verbas públicas
denunciada por Glauber Braga, da orgia das emendas parlamentares destinadas a
fins inconfessáveis — mas conhecidos pelo país —, como o enriquecimento ilícito
de agentes públicos.
É o usufruto de recursos para obras públicas nunca
realizadas (ou jamais concluídas), mas pagas pelo erário, pois sua real
finalidade é financiar projetos eleitorais. É a pequena política da advocacia
administrativa, levada a cabo por deputados-procuradores e lobistas de
interesses privados. É o tráfico de influência, a deslavada manipulação de
verbas públicas — instrumento superior do envilecimento da política.
A tudo isso Glauber Braga oferece um combate firme, sem
quartel. E esse combate, feito de peito aberto, pode custar-lhe o mandato.
No Brasil que já aspirou à modernidade, o campeão de hoje é
o patrimonialismo associado à política dos rincões. É o Centrão — um valhacouto
de políticos marginais (embora bem-sucedidos nos negócios e na traficância) —
que governa a Câmara, seu redil controlado a rédeas curtas. Pois é essa súcia que
lança mão de todas as armas para cassar o mandato do deputado fluminense e
expeli-lo da política, com uma inelegibilidade adicional de oito anos.
Glauber está há cerca de um ano sendo processado no referido
colegiado Câmara dos Deputados — agora já com a aprovação do parecer escrito
para ser lido pelo relator: um pobre, mas perigoso zé-ninguém, criado pelo
velho carlismo, que propõe a cassação de seu mandato. O pretexto acusatório é
uma reação passada do parlamentar que, seguidamente agredido por um trânsfuga
assalariado da extrema-direita, expulsou das dependências da Câmara esse
meliante — usando a força necessária. Glauber reagiu à baixaria quando, além de
agredido em sua integridade política e moral, viu a agressão estender-se — em
nível abjeto, o natural dos fascistas — contra sua mãe, um raro exemplo de
política e administradora proba, já bastante doente, vítima de Alzheimer
avançado. Saudade Braga viria a falecer poucos dias após a agressão sofrida
pelo filho.
Pois o pobre diabo que leu como seu o relatório pedindo a
cassação do mandato de Glauber Braga é o mesmo que, no recinto da Câmara,
agrediu fisicamente um escritor que ali lançava um livro tido como desairoso ao
cacique Antônio Carlos Magalhães — tio e mentor do hoje relator.
O Conselho aprovou o relatório espúrio, que será afinal submetido ao Plenário — quando decidir o presidente da Câmara (pau mandado do antecessor), isto é, quando estiverem somados e contados os votos necessários à sua aprovação. A cassação será também um aviso, que dirá ao coletivo de que lado está a força do arbítrio. E assim será, se essa violência não for repudiada pelo conjunto da Casa, pressionada pela sociedade.
* Com a colaboração de Pedro Amaral
Edição: @comitecarioca21 (grifos nosso)
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