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Nils Melzer |
Entrevista com Nils Melzer, Relator Especial da ONU para casos de Tortura
Por Daniel Ryser
O Relator Especial da ONU sobre Tortura, Nils Meizer, detalha pela primeira vez nesta longa entrevista sua investigação sobre a operação política e judicial para acabar com o fundador do Wikileaks.
Uma alegação de estupro que acaba na gaveta bem a tempo, pressão do Reino Unido para não desistir do caso, um juiz tendencioso, detenção em uma prisão de segurança máxima e tortura psicológica. Julian Assange já passou por tudo isso e logo estará em risco de extradição para os EUA, onde enfrenta até 175 anos de prisão por expor crimes de guerra
Pela primeira vez, o Relator Especial da ONU sobre tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanas ou degradantes, Nils Melzer, dá detalhes das controversas conclusões de sua investigação sobre o caso do fundador do Wikileaks, Julian Assange.
Nils Melzer, por que o Relator Especial da ONU sobre a Tortura está interessado em Julian Assange?
Recentemente me fizeram a mesma pergunta no Ministério das Relações Exteriores da Alemanha: este é realmente seu principal dever? Assange é vítima de tortura?
O que você respondeu?
O caso se enquadra em meus deveres de três maneiras diferentes: primeiro, Assange publicou provas de tortura sistemática. Mas ao invés dos perpetradores de tortura serem processados, Assange está sendo processado. Segundo, ele foi maltratado a tal ponto que agora mostra sintomas de tortura psicológica. E terceiro, ele pode ser extraditado para um país que mantém pessoas como ele em condições de prisão que a Anistia Internacional descreveu como de tortura.
Em resumo: Julian Assange revelou a tortura, ele próprio foi torturado e poderia ser torturado até a morte nos Estados Unidos. E tal caso não deveria fazer parte da minha área de responsabilidade? Além disso, o caso é de importância simbólica e afeta todos os cidadãos de um país democrático.
Por que o senhor não assumiu o caso muito antes?
Imagine uma sala escura. De repente, alguém acende uma luz sobre um elefante na sala que representa criminosos de guerra, corrupção. Assange é o homem que detém os holofotes. Os governos ficam momentaneamente chocados, mas depois giram as luzes da ribalta com acusações de estupro.
Esta é uma manobra clássica quando se trata de manipular a opinião pública. O elefante, mais uma vez, desaparece na obscuridade por trás dos holofotes e, em vez disso, Assange torna-se o foco das atenções e começamos a falar sobre se Assange está patinando na embaixada ou se ele alimenta seu gato adequadamente. De repente, todos nós sabemos que ele é um estuprador, um hacker, um espião e um narcisista. Mas os abusos e crimes de guerra que ele descobriu desvanecem-se na obscuridade. Eu também perdi meu foco, apesar de minha experiência profissional, o que deveria ter me deixado mais alerta.
Vamos começar pelo início: o que o levou a aceitar o caso?
Em dezembro de 2018, seus advogados me pediram para intervir. No início, eu recusei. Estava sobrecarregado com outros pedidos e não estava muito familiarizado com o caso. Minha impressão, largamente influenciada pela mídia, também foi influenciada pelo preconceito de que Julian Assange era de alguma forma culpado e que ele queria me manipular.
Em março de 2019, seus advogados se aproximaram de mim pela segunda vez porque havia indicações crescentes de que Assange logo seria expulso da embaixada do Equador. Eles me enviaram alguns documentos-chave e um resumo do caso e eu achei que minha integridade profissional exigia que eu ao menos desse uma olhada no material.
Então, o que aconteceu?
Rapidamente se tornou evidente que algo não estava certo. Minha vasta experiência em assuntos jurídicos me disse que havia uma contradição que não fazia sentido: por que uma pessoa estaria sujeita a nove anos de investigação preliminar por estupro sem nunca ter sido apresentada queixa?
Isso é incomum?
Eu nunca vi um caso semelhante. Qualquer pessoa pode iniciar uma investigação preliminar contra outra pessoa simplesmente indo à polícia e acusando-a de um crime. Entretanto, as autoridades suecas nunca estiveram interessadas no testemunho de Assange. Eles o deixaram intencionalmente no limbo. Imagine ser acusado de estupro por nove anos e meio por todo o aparato estatal e pela mídia, sem oportunidade de se defender, pois nenhuma acusação jamais foi apresentada.
Está dizendo que as autoridades suecas nunca estiveram interessadas no depoimento de Assange. Mas a mídia e as agências governamentais retrataram um cenário totalmente diferente ao longo dos anos: eles dizem que Julian Assange fugiu do Judiciário sueco para evitar a responsabilização.
Como as duas mulheres se conheceram?
Elas não se conheciam realmente. A.A., que estava hospedando Assange e atuando como secretária de imprensa, tinha se encontrado com S.W. em um evento onde S.W. estava usando um jersey de caxemira rosa. Ela aparentemente sabia por Assange que ele estava interessado em ter um encontro sexual com S.W. porque uma noite ela recebeu uma mensagem de um conhecido dizendo que ele sabia que Assange iria ficar com ela e que ele, o conhecido, gostaria de entrar em contato com Assange. A.A. respondeu: aparentemente Assange está dormindo neste momento com a "garota da caxemira". Na manhã seguinte, S.W. falou com A.A. ao telefone e disse que ela também tinha dormido com Assange e agora estava preocupada em ter sido infectada pelo HIV.
Esta preocupação era aparentemente real, porque S.W. foi até mesmo a uma clínica para uma consulta. A.A. então sugeriu: "Vamos à polícia, eles podem fazer o teste de HIV para Assange". Entretanto, as duas mulheres não foram à delegacia de polícia mais próxima, mas a uma muito distante, onde um amigo de AA trabalha como policial e que depois interrogou S.W.. No início A.A. estava presente, o que não é uma boa prática. Entretanto, até este ponto o único problema era, no máximo, o pouco profissionalismo.
A malícia deliberada das autoridades só se tornou aparente quando elas imediatamente espalharam a suspeita de estupro através da imprensa tablóide. E o fizeram sem perguntar a A.A. e contradizendo a declaração dada pela S.W.
Isto também violou uma proibição clara na lei sueca contra a publicação dos nomes de supostas vítimas ou perpetradores em casos de ofensas sexuais. O caso chegou então ao promotor público da capital, que suspendeu a investigação de estupro alguns dias depois, afirmando que, embora as declarações de S.W. fossem críveis, não havia provas de que um crime tivesse sido cometido.
Mas então o caso ganhou força. Por quê?
Então o supervisor do interrogador escreveu-lhe um e-mail dizendo-lhe para reescrever o depoimento de S.W..
Que mudanças o oficial fez?
Não sabemos, porque a primeira declaração foi digitada diretamente no programa de computador e não existe mais. Sabemos apenas que a declaração original, de acordo com o procurador geral, aparentemente não continha qualquer indicação de que um crime tinha sido cometido. O formulário editado diz que os dois fizeram sexo várias vezes, de forma consensual e com um preservativo.
Mas na manhã seguinte, de acordo com a declaração emendada, a mulher acordou porque tentou penetrá-la sem preservativo. Ela pergunta: "Você está usando camisinha?" Ele diz: "Não". Ela então responde: "É melhor que você não tenha HIV" e permite que ele continue. A declaração foi modificada sem envolver a mulher em questão e não foi assinada por ela. Esta é uma prova manipulada, a partir da qual as autoridades suecas criaram então uma história de estupro.
Por que as autoridades suecas fariam tal coisa?
O momento é decisivo: no final de julho, o Wikileaks, em cooperação com várias mídias internacionais, publicou os "diários de guerra do Afeganistão". Este foi um dos maiores vazamentos de informações na história do exército dos EUA.
Logo em seguida, os EUA exigiram que seus aliados inundassem Assange com casos criminais. Não estamos familiarizados com toda a correspondência, mas Stratfor, uma consultoria de segurança que trabalha para o governo dos EUA, aconselhou as autoridades americanas a aparentemente inundar Assange com todo tipo de casos criminais durante os próximos 25 anos.
Por que Assange não foi à polícia na época?
Ele foi, mencionei antes. Assange descobriu sobre as alegações de estupro pela imprensa. Ele entrou em contato com a polícia para que pudesse fazer seu depoimento. Embora o escândalo tenha chegado ao público, ele só foi autorizado a fazê-lo nove dias depois, quando a acusação de ter violado S.W. já havia sido retirada. Mas os procedimentos relacionados ao assédio sexual de A.A. estavam em andamento.
Em 30 de agosto de 2010, Assange apareceu na delegacia de polícia para fazer uma declaração. Ele foi interrogado pelo mesmo policial que havia ordenado a revisão do depoimento de S.W.. No início da conversa, Assange disse que estava pronto para fazer sua declaração, mas acrescentou que não queria ler nada disso na imprensa mais uma vez. Esse era seu direito e ele estava certo de que o faria.
No entanto, mais tarde naquela noite, tudo estava novamente em todos os jornais. Só poderia ter vindo das autoridades porque ninguém mais estava presente durante seu interrogatório. Claramente, a intenção era manchar sua reputação.
De onde veio a história de que Assange estava tentando escapar da justiça sueca?
Esta versão foi fabricada e não é consistente com os fatos. Se ele tivesse tentado se esconder, não teria aparecido na delegacia de polícia por sua livre e espontânea vontade. Com base na declaração emendada de S.W., foi apresentado um recurso contra a tentativa do promotor de suspender a investigação e em 2 de setembro de 2010 o processo de estupro foi retomado.
Claes Borgström foi nomeado representante legal para as duas mulheres com dinheiro público. O homem era sócio do escritório do ex-ministro da Justiça Thomas Bodström, sob cuja supervisão o pessoal de segurança sueco havia prendido dois homens que os EUA haviam declarado como suspeitos em metade de Estocolmo. Os homens foram capturados sem nenhum procedimento legal e depois entregues à CIA, que procedeu à tortura dos mesmos. Isto mostra ainda mais claramente o enorme pano de fundo transatlântico para este caso.
Depois que a investigação de estupro foi retomada, Assange indicou em várias ocasiões através de seu advogado que desejava responder às acusações. O promotor responsável continuou atrasando o assunto. Em uma ocasião, não se encaixava em sua agenda, em outra, o policial responsável estava doente. Três semanas depois, seu advogado finalmente escreveu que Assange realmente tinha que ir a Berlim para uma conferência e perguntou se lhe era permitido deixar o país. O Ministério Público lhe deu permissão por escrito para deixar a Suécia por curtos períodos de tempo.
E então?
A questão é: no dia em que Julian Assange deixou a Suécia, em um momento em que não estava claro se ele estava saindo por curto ou longo prazo, um mandado foi emitido para sua prisão. Ele voou com a Scandinavian Airlines (SAS) de Estocolmo para Berlim. Durante o vôo, seus laptops desapareceram de sua bagagem despachada. Quando chegou em Berlim, a Lufthansa solicitou uma investigação da SAS, mas a companhia aérea aparentemente se recusou a fornecer qualquer informação.
Por quê?
Esse é exatamente o problema. Neste caso, estão acontecendo constantemente coisas que não seriam possíveis a menos que você as veja de um ângulo diferente. De qualquer forma, Assange continuou para Londres, mas ele não tentou se esconder do Judiciário. Através de seu advogado sueco, ele ofereceu aos promotores várias datas possíveis para interrogatório na Suécia: esta correspondência existe. Então, aconteceu o seguinte: Assange soube que um caso criminal secreto havia sido aberto contra ele nos Estados Unidos. Na época, não foi confirmado pelos EUA, mas hoje sabemos que era verdade. A partir daí, o advogado de Assange começou a dizer que seu cliente estava preparado para testemunhar na Suécia, mas exigiu garantias diplomáticas de que a Suécia não o extraditaria para os EUA.
Isso era realmente possível?
Absolutamente. Alguns anos antes, como mencionei, o pessoal de segurança sueco havia entregue dois requerentes de asilo - ambos registrados na Suécia - à CIA sem nenhum procedimento legal. O abuso começou no aeroporto de Estocolmo, onde eles foram maltratados, drogados e transferidos para o Egito, onde foram torturados. Não sabemos se estes foram os únicos casos, mas sabemos sobre estes casos porque os homens sobreviveram. Mais tarde, ambos os homens apresentaram reclamações junto às agências de direitos humanos da ONU e ganharam seu caso. A Suécia foi forçada a pagar a cada um meio milhão de dólares em danos.
A Suécia aceitou as exigências de Assange?
Os advogados dizem que durante os quase sete anos em que Assange viveu na embaixada do Equador, eles fizeram mais de 30 ofertas para que Assange visitasse a Suécia em troca de uma garantia de que ele não seria extraditado para os Estados Unidos. Os suecos se recusaram a fornecer tal garantia, argumentando que os EUA não haviam feito um pedido formal de extradição.
Qual é sua opinião sobre a exigência feita pelos advogados de Assange?
Tais garantias diplomáticas são uma prática internacional rotineira. Os indivíduos buscam garantias de que não serão extraditados para lugares onde há o perigo de graves violações dos direitos humanos, independentemente de o país em questão ter ou não feito um pedido de extradição. Não é um procedimento legal, mas um procedimento político.
Aqui está um exemplo: digamos que a França exige que a Suíça extradite um empresário cazaque que vive na Suíça mas é procurado pela França e pelo Cazaquistão sob acusação de fraude fiscal. A Suíça não vê perigo de tortura na França, mas acredita que tal perigo existe no Cazaquistão. Portanto, a Suíça diz à França: vamos extraditá-lo, mas queremos uma garantia diplomática de que ele não será extraditado para o Cazaquistão. A resposta francesa não seria: "O Cazaquistão não apresentou sequer um pedido". Deveria ser que eles, é claro, concederiam tal garantia.
Os argumentos vindos da Suécia foram tênues, na melhor das hipóteses. Essa é uma parte da questão. A outra, e digo isto com base em toda a experiência que tenho na prática internacional padrão, é que se um país se recusa a fornecer tal garantia diplomática, todas as dúvidas sobre as boas intenções do país em questão são justificadas. De uma perspectiva legal, afinal de contas, os Estados Unidos não têm absolutamente nada a ver com os procedimentos de crimes sexuais suecos.
Por que a Suécia não quer oferecer tal garantia?
Basta ver como o caso foi tratado: para a Suécia, nunca foi no interesse das duas mulheres. Mesmo depois de procurar garantias de não extradição, Assange ainda queria testemunhar. Ele disse: se você não pode garantir que não serei extraditado, então estou disposto a ser interrogado em Londres ou por videoconferência.
Mas é normal ou aceitável que as autoridades suecas viajem a um país diferente para tal interrogatório?
Essa é outra indicação de que a Suécia nunca esteve interessada em encontrar a verdade. Para exatamente este tipo de questões judiciais existe um tratado de cooperação entre o Reino Unido e a Suécia que prevê que as autoridades suecas possam viajar para o Reino Unido, ou vice-versa, para interrogatório ou que o interrogatório possa ser conduzido por videoconferência.
Durante o período de tempo em questão, tais interrogatórios foram conduzidos entre a Suécia e o Reino Unido em 44 outros casos. Foi somente no caso de Julian Assange que a Suécia insistiu que era essencial que ele comparecesse pessoalmente.
Por que isso aconteceu dessa forma?
Há apenas uma explicação para tudo isso: a recusa de conceder garantias diplomáticas, a recusa de interrogá-lo em Londres: eles queriam detê-lo para que pudessem extraditá-lo para os Estados Unidos.
O número de delitos registrados na Suécia nas primeiras semanas da investigação criminal preliminar é simplesmente grotesco. O Estado designou um conselheiro jurídico para as mulheres que lhes disse que a interpretação criminosa do que elas tinham vivido dependia do Estado e não delas.
Quando a assessora jurídica foi questionada sobre as contradições no testemunho das mulheres e a narrativa aderida pelos funcionários públicos, a assessora disse, referindo-se às mulheres: "Ah, mas elas não são advogadas".
Mas durante cinco longos anos a promotoria sueca evitou questionar Assange sobre o suposto estupro, até que seus advogados finalmente pediram à Suprema Corte da Suécia que obrigasse a promotoria a apresentar queixa ou a encerrar o caso. Quando os suecos disseram ao Reino Unido que poderiam ser obrigados a desistir do caso, os britânicos responderam com preocupação: "Não se atrevam a desistir".
Você está falando sério?
Sim, os britânicos, ou mais especificamente o setor da procuradoria da Coroa, queriam impedir a Suécia de desistir do caso a qualquer custo. Embora realmente os britânicos devessem estar felizes por não terem mais que gastar milhões em dinheiro dos contribuintes para manter a embaixada do Equador sob vigilância constante para evitar a fuga de Assange.
Por que os britânicos estavam tão ansiosos para impedir que os suecos encerrassem o caso?
Devemos deixar de acreditar que havia qualquer interesse real em prosseguir com uma investigação sobre um crime sexual. O que o WikiLeaks fez é uma ameaça à elite política dos Estados Unidos, Grã-Bretanha, França e Rússia em igual medida. O Wikileaks publica informações secretas do estado. E em um mundo, mesmo nas chamadas democracias maduras, onde a disseminação de segredos é generalizada, isso é considerado uma ameaça fundamental. Assange deixou claro que os países não estão mais interessados no sigilo legítimo, mas na supressão de informações importantes sobre corrupção e crime.
Tomemos o arquétipo caso do Wikileaks sobre o vazamento de informações fornecidas por Chelsea Manning: o vídeo chamado "Collateral Murder" (Assassinato Colateral). (Nota do editor: em 5 de abril de 2010, o Wikileaks publicou um vídeo classificado do exército estadunidense mostrando o assassinato de várias pessoas em Bagdá por soldados estadunidenses, incluindo dois funcionários da agência de notícias Reuters).
Como consultor jurídico de longa data do Comitê Internacional da Cruz Vermelha e delegado em zonas de guerra, posso dizer que o vídeo certamente documenta um crime de guerra. Uma tripulação de helicóptero simplesmente ceifa um grupo de pessoas. Pode até ser que uma ou duas dessas pessoas estivessem carregando uma arma, mas as pessoas feridas foram intencionalmente atingidas. Isso é um crime de guerra.
"Ele está ferido", você pode ouvir um americano dizer. "Eu estou atirando". E então eles riem. Depois chega uma picape para salvar os feridos. O motorista está com seus dois filhos. Você pode ouvir os soldados dizer: "Bem, a culpa é deles por trazerem seus filhos para uma batalha". E então eles abrem fogo. O pai e os feridos são mortos imediatamente, embora as crianças tenham sobrevivido com ferimentos graves. Através da publicação do vídeo, tornamo-nos testemunhas diretas de um massacre criminoso e inconcebível.
O que uma democracia constitucional deveria fazer em tal situação?
Uma democracia constitucional provavelmente investigaria Chelsea Manning por violar o segredo oficial, porque ela passou o vídeo para Assange. Mas certamente não iria atrás de Assange, porque ele publicou o vídeo como uma questão de interesse público, de acordo com as práticas clássicas do jornalismo investigativo. Acima de tudo, porém, uma democracia constitucional investigaria e puniria os criminosos de guerra. Estes soldados deveriam estar atrás das grades. Mas nenhuma investigação criminal foi lançada contra qualquer um deles.
Pelo contrário, o homem que informou o público está sob custódia em Londres e enfrenta uma possível sentença nos Estados Unidos de até 175 anos de prisão. Isso é uma sentença completamente absurda. Em comparação: os principais criminosos de guerra no tribunal da Iugoslávia receberam sentenças de 45 anos. 175 anos de prisão em condições que foram consideradas desumanas pelo relator especial da ONU e pela Anistia Internacional. Mas o que é realmente horrível neste caso é a ilegalidade que se desenvolveu: os poderosos podem assassinar sem medo de punição e o jornalismo é transformado em espionagem. Está se tornando um crime dizer a verdade.
O que espera a Assange uma vez que seja extraditado?
Ele não receberá um julgamento de acordo com o Estado de direito. Esta é outra razão pela qual sua extradição não deve ser permitida. Assange receberá um julgamento do júri em Alexandria, Virgínia, o famoso "Tribunal de Espionagem", onde os Estados Unidos julgam todos os casos de segurança nacional. Este local não foi escolhido ao acaso, porque os jurados devem ser escolhidos em proporção à população local e 85% dos residentes de Alexandria trabalham na comunidade de segurança nacional: na CIA, NSA, Departamento de Defesa e Departamento de Estado.
Quando as pessoas são julgadas por prejudicar a segurança nacional na frente de tal júri, o veredicto é claro desde o início. Os casos são sempre julgados em frente ao mesmo juiz, à porta fechada e com base em provas classificadas. Ninguém jamais foi absolvido em tal caso. O resultado é que a maioria dos réus aceita um acordo, em que admite uma culpa parcial a fim de receber uma sentença mais leve.
Você está dizendo que Julian Assange não vai receber um julgamento justo nos Estados Unidos?
Sem dúvida. Desde que os funcionários do governo dos EUA obedeçam às ordens de seus superiores, eles podem envolver-se em guerras de agressão, crimes de guerra e tortura sabendo muito bem que nunca serão responsabilizados por seus atos. O que aconteceu com as lições aprendidas com os julgamentos de Nuremberg? Trabalhei tempo suficiente em zonas de conflito para saber que são cometidos erros nas guerras. Eles nem sempre são atos criminosos sem escrúpulos. É freqüentemente o resultado de estresse, exaustão e pânico.
É por isso que posso entender absolutamente quando um governo diz: "Nós traremos a verdade à luz e, como Estado, assumiremos total responsabilidade pelos danos causados. Mas se a culpa não puder ser atribuída diretamente aos indivíduos, não imporemos punições severas". Mas é extremamente perigoso quando a verdade é abafada e os criminosos não são levados à justiça. Nos anos 30, a Alemanha e o Japão deixaram a Liga das Nações. Quinze anos mais tarde, o mundo estava em ruínas.
Hoje, os EUA se retiraram do Conselho de Direitos Humanos da ONU e nem o massacre do "assassinato colateral", nem a tortura da CIA após o 11 de setembro, nem a guerra de agressão contra o Iraque terminaram em investigações criminais.
Agora o Reino Unido está seguindo o exemplo. O Comitê de Segurança e Inteligência do próprio Parlamento do país publicou dois extensos relatórios em 2018 mostrando que a Grã-Bretanha estava muito mais envolvida no programa secreto de tortura da CIA do que se acreditava anteriormente. O comitê recomendou um inquérito formal. A primeira coisa que Boris Johnson fez depois de se tornar primeiro-ministro foi anular esse inquérito.
Em abril, a polícia britânica retirou Julian Assange da embaixada do Equador. O que você pensa sobre estes eventos?
Em 2017, um novo governo foi eleito no Equador. Em resposta, os Estados Unidos escreveram uma carta indicando que estavam ansiosos para cooperar com o Equador. Havia, é claro, muito dinheiro em jogo, mas havia um obstáculo no caminho: Julian Assange. A mensagem era que os Estados Unidos estavam dispostos a cooperar se o Equador entregasse Assange aos Estados Unidos. Naquele momento, a embaixada equatoriana começou a aumentar a pressão sobre Assange. Eles tornaram a vida difícil para ele. Mas ele ficou. Então o Equador cancelou sua anistia e deu luz verde à Grã-Bretanha para prendê-lo.
Como o governo anterior lhe havia concedido a cidadania equatoriana, tiveram que revogar seu passaporte porque a Constituição equatoriana proíbe a extradição de seus próprios cidadãos. Tudo isso aconteceu da noite para o dia e sem qualquer procedimento legal. Assange não teve oportunidade de fazer uma declaração ou de recorrer a procedimentos legais. Ele foi preso pelos britânicos e levado perante um juiz britânico no mesmo dia, que o condenou por violar as condições de sua liberdade condicional.
O que o senhor acha deste veredicto rápido?
Assange teve apenas 15 minutos para se preparar com seu advogado. O julgamento em si também durou apenas 15 minutos. O advogado de Assange colocou um denso processo na mesa e fez uma objeção formal a uma das juízas por conflito de interesses, porque seu marido havia sido exposto em 35 casos do Wikileaks. Mas o juiz principal afastou as preocupações sem examiná-las mais. Ele disse que acusar sua colega de um conflito de interesses era uma afronta. Assange proferiu apenas uma frase durante todo o julgamento: "Eu me declaro inocente". O juiz se voltou para ele e disse: "Você é um narcisista que não pode ver além de seus próprios interesses. Eu o considero culpado de violar sua liberdade condicional".
Se eu o entendi corretamente, desde o início Julian Assange nunca teve uma chance.
A questão é essa. Não estou dizendo que Julian Assange é um anjo ou um herói. Essa não é a questão. Estamos falando de direitos humanos e não dos direitos dos heróis ou anjos. Assange é uma pessoa e ele tem o direito de se defender e de ser tratado humanamente. Seja o que for que ele seja acusado, Assange tem direito a um julgamento justo. Mas esse direito lhe foi deliberadamente negado: na Suécia, nos Estados Unidos, na Grã-Bretanha e no Equador. Ao invés disso, ele foi deixado a apodrecer por quase sete anos no limbo de uma sala.
De repente, ele foi levado e condenado em questão de horas e sem qualquer preparação para uma violação de fiança que consistiu em receber asilo diplomático por outro Estado membro da ONU com base em perseguição política, como prevê o direito internacional e como inúmeros chineses, russos e outros dissidentes fizeram nas embaixadas ocidentais.
É óbvio que estamos tratando de um caso de perseguição política. Na Grã-Bretanha, os delitos por violação da liberdade condicional raramente levam a penas de prisão, geralmente estão sujeitos a multas. Assange, pelo contrário, foi condenado em um julgamento rápido a 50 semanas em uma prisão de segurança máxima. Esta é claramente uma sentença desproporcional que tinha um único objetivo: manter Assange por tempo suficiente para que os EUA preparassem seu caso de espionagem contra ele.
Como Relator Especial da ONU sobre tortura, o que você tem a dizer sobre suas condições atuais de encarceramento?
A Grã-Bretanha não permitiu que Julian Assange entrasse em contato com seus advogados nos Estados Unidos, onde ele é objeto de procedimentos secretos. Seu advogado britânico também se queixou de não ter sequer acesso suficiente a seu cliente para rever com ele documentos e provas do tribunal. Em outubro ele não foi autorizado a ter nenhum documento de seu processo em sua cela. A ele foi negado seu direito fundamental de preparar sua própria defesa, como garantido pela Convenção Europeia de Direitos Humanos. Além disso, há seu confinamento quase total na solitária e a punição completamente desproporcional por violar a liberdade condicional. Assim que ele sai de sua cela, os corredores são esvaziados para evitar que ele tenha contato com outros detentos.
E tudo isso por causa de uma simples violação da fiança? Em que momento a prisão se torna uma tortura?
Julian Assange tem sido intencionalmente torturado psicologicamente pela Suécia, Grã-Bretanha, Equador e Estados Unidos. Primeiro através do tratamento altamente arbitrário do processo contra ele. A forma como a Suécia conduziu o caso, com a assistência ativa da Grã-Bretanha, teve como objetivo colocá-lo sob pressão e prendê-lo na embaixada. A Suécia nunca esteve interessada em encontrar a verdade e ajudar essas mulheres, mas em colocar Assange contra a parede.
Os procedimentos judiciais destinados a empurrar uma pessoa para uma posição em que ela não pode se defender foram abusos. Além disso, há as medidas de vigilância, os insultos, humilhações e ataques de políticos nestes países, incluindo ameaças de morte. Este abuso constante do poder estatal desencadeou um severo estado de estresse e ansiedade em Assange e resultou em danos cognitivos e neurológicos mensuráveis.
Visitei Assange em sua cela de Londres em maio de 2019, juntamente com dois médicos experientes e amplamente respeitados, especializados em exames forenses e psicológicos de vítimas de tortura. O diagnóstico alcançado pelos dois médicos foi claro: Julian Assange mostra sintomas típicos de tortura psicológica. Se ele não receber proteção em breve, é provável que sua saúde se deteriore rapidamente e ele possa morrer.
Meio ano após Assange ter sido detido de novo na Grã-Bretanha, a Suécia abandonou discretamente o caso contra ele em novembro de 2019, após nove longos anos. Por que fez isso então?
O Estado sueco passou quase uma década apresentando intencionalmente Julian Assange ao público como um agressor sexual. Então, de repente, eles abandonaram o caso contra ele por causa do mesmo argumento usado pela primeira promotora de Estocolmo em 2010, quando ela inicialmente suspendeu a investigação após apenas cinco dias: embora a declaração da mulher fosse crível, não havia provas de que ele tivesse cometido um crime. É um escândalo incrível.
Mas o momento não foi acidental. Em 11 de novembro, um documento oficial foi tornado público que eu havia enviado ao governo sueco dois meses antes de ser tornado público. No documento, pedi ao governo que explicasse cerca de 50 pontos relacionados com as implicações dos direitos humanos de seu tratamento do caso.
Como é possível que a imprensa tenha sido imediatamente informada apesar da proibição de fazê-lo? Como é possível que uma suspeita tenha sido tornada pública apesar de o interrogatório ainda não ter ocorrido? Como é possível que se diga que a violação ocorreu apesar do fato de que a mulher envolvida contesta essa versão dos eventos? No dia em que o documento foi tornado público, recebi uma resposta miserável da Suécia: o governo não tem mais comentários sobre este caso.
O que significa essa resposta?
É uma admissão de culpa.
De que forma?
Como Relator Especial da ONU, fui encarregado pela comunidade internacional de investigar alegações feitas por vítimas de tortura e, se necessário, de solicitar explicações ou investigações aos governos. Este é o trabalho diário que faço com todos os Estados membros da ONU. Pela minha experiência, posso dizer que os países que agem de boa fé estão quase sempre interessados em me fornecer as respostas de que preciso para destacar a legalidade de seu comportamento.
Quando um país como a Suécia se recusa a responder perguntas sobre tortura apresentadas pelo Relator Especial da ONU, mostra que o governo está ciente da ilegalidade de seu comportamento e não quer assumir a responsabilidade. Eles se desligaram e desistiram do caso uma semana depois porque sabiam que eu não iria desistir. Quando países como a Suécia se deixam manipular desta forma, nossas democracias e nossos direitos humanos enfrentam uma ameaça fundamental.
Você acha que a Suécia estava plenamente consciente do que estava fazendo?
Sim, em minha opinião, a Suécia agiu muito claramente de má fé. Se eles tivessem agido de boa fé, não teriam tido motivos para se recusar a responder minhas perguntas. O mesmo vale para os britânicos: após minha visita a Assange em maio de 2019, eles levaram seis meses para me responder em uma carta de uma página que se limitava principalmente a rejeitar todas as alegações de tortura e todas as inconsistências nos procedimentos legais.
Se você vai fazer as coisas dessa maneira, qual é o objetivo do meu mandato? Eu sou o Relator Especial da ONU sobre Tortura. Tenho um mandato para fazer perguntas claras e exigir respostas. Qual é a base legal para negar a alguém seu direito fundamental de se defender? Por que um homem que não é perigoso nem violento é mantido em solitária por vários meses, quando as regras da ONU proíbem legalmente o confinamento em solitária por períodos superiores a 15 dias? Nenhum destes Estados membros da ONU iniciou uma investigação, nem respondeu às minhas perguntas ou demonstrou qualquer interesse em dialogar.
O que significa quando os Estados membros da ONU se recusam a fornecer informações ao seu próprio Relator Especial sobre tortura?
Que se trata de um assunto previamente acordado. Um julgamento de fachada será usado para fazer um exemplo de Julian Assange. O objetivo é intimidar outros jornalistas. A intimidação, a propósito, é um dos principais propósitos para o uso da tortura em todo o mundo. A mensagem para todos nós é: isto é o que acontecerá com você se você fizer o mesmo que o Wikileaks.
É um modelo que é muito perigoso por ser tão simples: pessoas que obtêm informações confidenciais de seus governos ou empresas transferem essas informações para o Wikileaks, mas o denunciante permanece anônimo. A reação mostra como a ameaça é percebida como grande: quatro países democráticos uniram forças (Estados Unidos, Equador, Suécia e Reino Unido) para alavancar seu poder e retratar um homem como um monstro para que ele pudesse então ser queimado na fogueira sem que ninguém protestasse. O caso é um grande escândalo e representa o fracasso do Estado de direito ocidental. Se Julian Assange for condenado, eles condenarão a liberdade de imprensa à morte.
O que poderia significar este possível precedente para o futuro do jornalismo?
Em um nível prático, significa que você, como jornalista, deve se defender agora. Porque se o jornalismo investigativo for classificado como espionagem e puder ser incriminado mundialmente, a censura e a tirania se seguirão. Um sistema assassino está sendo criado diante de nossos próprios olhos. Crimes de guerra e torturas não estão sendo processados.
Vídeos estão circulando no YouTube, no qual soldados americanos se vangloriam de levar mulheres iraquianas ao suicídio com estupro sistemático. Ninguém os está investigando. Ao mesmo tempo, uma pessoa que expõe tais coisas está sendo ameaçada com 175 anos de prisão. Durante toda uma década, ele tem sido bombardeado com acusações que não podem ser provadas. Ele está sendo morto e ninguém está assumindo a responsabilidade.
Isto marca uma degradação do contrato social. Nós damos poder aos países e o delegamos aos governos, mas em troca eles devem ser responsabilizados pela forma como exercem esse poder. Se não os responsabilizarmos, mais cedo ou mais tarde perderemos nossos direitos. Os seres humanos não são democráticos por natureza. O poder corrompe se não for monitorado. A corrupção acontece quando não insistimos que o poder seja controlado.
Você está dizendo que atacar Assange ameaça o próprio cerne da liberdade de imprensa.
Vamos ver onde estaremos daqui a 20 anos se Assange for condenado e sobre o que você poderá escrever como jornalista. Estou convencido de que corremos um grave perigo de perder a liberdade de imprensa. Já está acontecendo: de repente a sede da ABC News na Austrália foi invadida por causa do caso " diários da Guerra do Afeganistão". A razão? Mais uma vez, a imprensa descobriu o mau comportamento dos representantes do Estado.
Para que a divisão de poderes funcione, o estado deve ser monitorado pela imprensa como o quarto poder. O WikiLeaks é a conseqüência lógica de um processo contínuo de sigilo generalizado: se a verdade não puder mais ser examinada porque tudo é mantido em segredo, se relatórios de investigação sobre a política de tortura do governo dos EUA forem mantidos em segredo e até mesmo grandes seções do resumo publicado forem ocultadas, em algum momento haverá vazamentos de informação inevitáveis.
O WikiLeaks é a conseqüência de tal sigilo desenfreado e reflete a falta de transparência em nosso sistema político moderno. Existem, é claro, áreas onde o sigilo pode ser vital. Mas se não soubermos mais o que nossos governos estão fazendo e os padrões que estão seguindo; se os crimes não forem mais investigados, então isso representa um grave perigo para a integridade social.
Quais são as consequências?
Como relator especial da ONU sobre tortura e, antes disso, como delegado da Cruz Vermelha, tenho visto muitos horrores e violência e tenho visto quão rapidamente países pacíficos como a Iugoslávia ou Ruanda podem se transformar em infernos.
A raiz de tais desenvolvimentos é sempre a falta de transparência e um poder político ou econômico desenfreado combinado com a ingenuidade, indiferença e maleabilidade da população. De repente, o que sempre aconteceu com o outro (tortura, estupro, expulsão e assassinato com impunidade) pode facilmente acontecer conosco ou com nossos filhos. E ninguém vai se importar. Posso te jurar que é assim.
https://cubaenresumen.org/2023/04/17/cuatro-paises-se-han-coordinado-para-quemar-a-assange-en-la-hoguera-sin-que-nadie-proteste/
Tradução; Carmen Diniz
p/Comitê Carioca de Solidariedade a Cuba e às Causas Justas.