3 de nov. de 2021

ESPECIALISTAS ALEMÃES RECOMENDAM VACINAS CUBANAS CONTRA A COVID-19

 Por: Prof. Dr. Bert Hoffmann, Prof. Dr. Jan Felix Drexler    

 Tradução: Marcia Choueri

Vacinação em El Salvador. Foto: Reuters

Covid-19 na América Latina : onde estamos e o que vem por aí

À medida que diminuem as taxas de infecção, grande parte da América Latina parece estar dando um respiro, após o ataque de Covid-19. Entretanto o acesso às vacinas é desigual, tanto dentro dos países como entre eles, e a cobertura de vacinas é heterogênea. Combinado com taxas de infecção desiguais e a chegada da variante Delta, altamente contagiosa, impõem-se novos desafios epidemiológicos e políticos.

·            Com 45 milhões de infecções registradas e quase um terço de todas as mortes relacionadas com Covid-19 do mundo inteiro, a América Latina converteu-se em um ponto de atenção mundial na pandemia.

·            Embora o Chile e a Costa Rica tenham taxas de vacinação mais altas que a Alemanha ou os Estados Unidos, a metade da população da América Latina ainda não recebeu sua primeira dose de vacina. O que pode ajudar é a grande quantidade de pessoas que adquiriram alguma imunidade por infecções anteriores por Covid-19, além das identificadas nas estatísticas oficiais.

·            A diplomacia das vacinas mudou de cor. Inicialmente, a América Latina dependia dos envios de vacinas da China, Índia e Rússia. A esta altura, os EUA e a iniciativa multilateral COVAX converteram-se nos maiores provedores. As políticas deverão ajustar-se à combinação resultante de vacinas de diferente eficácia e reconhecimento internacional.

·            Para reduzir a dependência externa, a região deverá fortalecer sua capacidade de desenvolver e produzir em massa vacinas, equipamentos de diagnóstico e tecnologia de ARNm. As vacinas desenvolvidas em Cuba poderiam passar a formar parte da carteira de vacinas que o continente necessitará durante muitos anos.

·            A pandemia evidenciou as debilidades estruturais da região. Deve-se incrementar o financiamento da saúde pública; devem-se aproveitar as medidas especiais de política social adotadas durante a pandemia, para fazer que as redes de seguridade social sejam mais resilientes e inclusivas.

Implicações políticas

Uma forte campanha de vacinação continua sendo chave para manter a pandemia sob controle. À medida que a imunidade, seja por infecções anteriores, seja por vacinas, eventualmente diminua, é possível que a vacinação deva ser integrada na atenção médica preventiva de rotina. A cooperação que ultrapasse as dicotomias ideológicas esquerda-direita no diagnóstico epidemiológico, a pesquisa, a vacinação e a prestação de serviços de saúde deve converter-se em uma prioridade na região, bem como para os parceiros internacionais.

O drama latino-americano: o pior já passou?

Apesar de ser o lar de apenas 8,4 por cento da população mundial, a América Latina e o Caribe representam quase um terço das mortes relacionadas com a Covid-19 até agora. E inclui o segundo número de mortes mais alto do mundo entre os países (Brasil) e a mais alta taxa de mortes per capita registrada no mundo (Peru; ver Figura 1). A trágica marca de um milhão de mortes em nível regional foi superada já em maio de 2021.

Mortes confirmadas por milhão de pessoas por Covid 19


A horrenda cifra de mortos na América Latina e Caribe se produz, apesar de sua população ter uma idade média de 31 anos e, portanto, muito mais jovem que a dos Estados Unidos (idade média de 38,5 anos) ou Europa (42,5 anos). O caso do Peru, que durante anos teve algumas das taxas de crescimento econômico mais altas do continente, destaca que o número de mortos não é uma mera função do produto interno bruto. Ao contrário, a pandemia expôs brutalmente as debilidades estruturais da região: sistemas de atenção médica sobrecarregados e com fundos insuficientes, acesso tardio e limitado às vacinas, desigualdades sociais profundamente arraigadas, práticas trabalhistas informais extensivas, dietas pouco saudáveis que levam a uma obesidade generalizada, capacidade estatal insuficiente e incoerência. Todas as políticas contribuíram para este doloroso resultado.

Mais além do drama epidemiológico, as consequências econômicas e sociais da interrupção do comércio e viagens mundiais, e mais as medidas de bloqueio foram enormes, desde um forte declínio econômico até o sofrimento psicológico e a perda do potencial educativo. Um estudo recente estima que mais 22 milhões de pessoas caíram na pobreza na região em 2020, com um impacto significativo sobre a infância (CEPAL e OPS 2021: 3). Também destacou que, na que é a região mais desigual do mundo, “a vulnerabilidade socioeconómica está altamente correlacionada com a gravidade da infecção e a mortalidade por Covid-19” (CEPAL e OPS 2021: 18).

A pandemia de Covid-19 também demonstrou que os primeiros avanços não são o mesmo que o êxito em longo prazo. Israel, o Reino Unido e os Estados Unidos tinham sido pioneiros na campanha de vacinação; entretanto, no final de 2021, não apenas suas taxas de vacinação estancaram, mas suas infecções por Covid-19 per capita são mais altas que as da América do Sul. Certamente, aqui é preciso ter em conta uma subnotificação significativa, devido a testes insuficientes ou evitação de testes. Mas, ainda assim: enquanto, em Israel, Reino Unido e nos EUA, as taxas de infecção aumentaram desde o verão de 2021, na América do Sul, as taxas de infecção, hospitalização e morte informadas diminuíram. Há três fatores principais que provavelmente expliquem essa tendência:

·            O efeito estacional, já que no hemisfério Sul já passou a temporada de inverno.

·            O avanço das campanhas de vacinação. A maioria dos países latino-americanos já atingiram aproximadamente taxas de cobertura de vacinação entre 30 e 60 por cento da população, que é muito mais alta que em outras regiões tropicais, como a África subsaariana.

·            Uma grande parte da população adquiriu algum nível de imunidade por ter passado por uma infecção, tenha sido diagnosticada ou não.

Sem embargo, a variante Delta altamente contagiosa do SARS-CoV-2, que já arrasou na maior parte do mundo, agora está fazendo sua entrada completa na América do Sul. Acaba de chegar no princípio deste verão ao Caribe, que por sua vez está vendo um aumento vertiginoso das taxas de contágio. Barbados atualmente encabeça as tabelas mundiais, com uma taxa de incidência de sete dias de mais de 700 contágios por cada 100.000 pessoas.

Então, quanta luz há no final do túnel para a América Latina? Já passou o pior, de verdade? Para abordar esta questão, refletiremos sobre o desigual processo de vacinação na região; os níveis heterogêneos de infecções passadas que dão algum nível de imunidade; a chegada tardia da variante Delta em partes da região; e a complexa combinação de vacinas aplicadas e suas implicações. Depois, abordaremos a necessidade de fortalecer a preparação para uma pandemia, para superar a dependência externa, antes de identificar finalmente os passos necessários para corrigir o dano social e econômico que a pandemia causou em nível regional.

Vacinação em grande escala, mas desigual

A absoluta escassez de vacinas que marca a fase inicial da pandemia deu lugar desde então a um processo de vacinação muito desigual na região, entre países, dentro dos países e também no que se refere aos tipos de vacina disponíveis. Nos últimos meses, quase todos os países da América Latina avançaram significativamente em seus programas de vacinação (ver Figura 2 a seguir). Mas vale a pena distinguir entre três sub-regiões aqui:

·            Em toda a América do Sul, quase dois terços da população receberam pelo menos sua primeira injeção.

·            Na América Central, o panorama é heterogêneo: avanços significativos na Costa Rica, El Salvador e Panamá; baixas taxas de vacinação na Guatemala, Honduras e Nicarágua; no México, atingiu-se um termo médio, quase equiparado ao da Colômbia e Peru, mas claramente inferior ao dos líderes sul-americanos Argentina, Brasil, Chile e Uruguai.

·            No Caribe, a diplomacia de vacinas inicialmente inteligente converteu vários Estados em pioneiros na vacinação (Hoffmann 2021). Sem embargo, essas campanhas logo se estancaram; a estas alturas, as taxas de vacinação estão muito atrás das taxas do continente latino-americano. Cuba é uma exceção notável: começou a vacinação mais tarde que outros, mas quase 90 por cento da população recebeu pelo menos a primeira dose.

Em muitos lugares, a disponibilidade de vacinas continua sendo um gargalo. Outro problema, também distribuído de maneira muito desigual, é a rejeição às vacinas. No Brasil, por exemplo, as instituições de saúde pública têm uma antiga reputação de progresso social e, ao longo das décadas, as vacinas adquiriram uma ampla aceitação. Isso prevaleceu sobre a desinformação das redes sociais e a atitude negacionista do governo federal. As metrópoles do Rio de Janeiro e São Paulo agora contam com taxas de vacinação mais altas que Berlim ou Nova York.

Vacinação na América Latina no fechamento de 18 de outubro de 2021. Fonte: Our World in Data


Entretanto, em outros países, incluídos muitos do Caribe, as autoridades sanitárias estão lutando contra o ceticismo frente às vacinas, inclusive quando a variante Delta ataca com força na região. No pequeno estado insular da Dominica, por exemplo, em 1º de abril de 2021, cerca de 25 por cento da população havia recebido sua primeira dose, colocando o país na vanguarda. Mas, de lá pra cá, a campanha de vacinação avançou a passo de tartaruga: menos de 35% em 1º de outubro de 2021. A Dra. Carissa Etienne, Diretora da Organização Pan-americana da Saúde (OPS) e nascida na Dominica, apontou recentemente: “Inclusive quando há vacinas disponíveis, as pessoas não se apresentam” (OPS 2021).

Na Jamaica, a taxa de vacinação é ainda menor. Menos de 10 por cento da população se vacinou por completo. Segundo uma pesquisa de 2020, 72 por cento dos jamaicanos disseram que não aceitariam uma vacina contra a Covid-19 (citado em CARPHA 2021: 2). Entretanto as pesquisas não oferecem explicações satisfatórias. Na que foi realizada pela Agência de Saúde Pública do Caribe, os entrevistados ofereceram com maior frequência as respostas padrão: que estava preocupado com os possíveis efeitos secundários; não sabia o suficiente sobre a vacina; pensou que a vacina foi desenvolvida rápido demais (CARPHA 2021: 11). Mas em nada disto, nem em sua exposição às redes sociais, a região se diferencia do resto do mundo.

A entrada atrasada da variante Delta

Desde este verão, o predomínio da Delta VOC foi observado em nível mundial, mas não (ainda) em toda a América do Sul. Na Colômbia, a variante Mu ainda domina, na Bolívia, a variante Gama, enquanto que no Peru a variante Lambda mantém uma forte presença. Se estas atrasaram o surgimento da variante Delta, ou se sua introdução tardia é simplesmente uma questão de conectividade internacional reduzida, continua sendo tema de debate. Mas há poucas dúvidas de que, com o tempo, o aumento da transmissibilidade da variante Delta fará com que domine nesses países.

No México, onde a variante Delta se tornou dominante no transcurso deste verão, as taxas de infecção por Covid-19 aumentaram, mas não de maneira dramática, nem por muito tempo. A ministra de Saúde argentina, Carla Vizzotti, advertiu que será impossível evitar que a variante Delta circule no país; de fato, chegou a representar 50 por cento dos casos nas últimas amostras. No Brasil, muitos temiam que a variante Delta produzisse outra onda de devastação, num país que já chorou 600.000 mortos. Entretanto, mesmo com a variante Delta dominando por completo neste momento, e apesar de um relaxamento das medidas de distanciamento social, até agora, não se observou um aumento importante nas taxas de infecção.

Isto é tanto mais notável, quanto no Caribe o panorama é exatamente o contrário. Este tinha passado impressionantemente bem através das primeiras ondas da pandemia, em comparação com a América Latina continental, mas isso mudou, quando a Delta VOC chegou às ilhas do Caribe neste verão. O primeiro país afetado foi Cuba, onde as crescentes taxas de infecção levaram o sistema de saúde da ilha à beira do colapso. Mais recentemente, foram os Estados insulares do Caribe anglófono que provaram uma explosão de casos, o que atingiu seus sistemas de saúde e os colocou entre os países com as mais altas incidências de infecção per capita do mundo (Figura 3).


Casos diários novos de Covid-19 por cada milhão de pessoas

Imunidade parcial por infecções passadas

Então, o que explica essas diferenças regionais? Combinada com taxas de vacinação insuficientes, a diferença crucial é provavelmente a exposição comparativamente baixa do Caribe ao vírus, durante o primeiro ano e meio da pandemia. Em contraste, tanto na América Central como na América do Sul, a terrível pandemia deixou centenas de milhares de mortos e milhões de infectados. O Brasil, por exemplo, notificou quase 20 milhões de casos confirmados, até outubro de 2021, mais de 10 por cento da população total do país. Isso pode ser só a ponta do iceberg, dada a alta proporção de infecções assintomáticas ou leves (estimadas em cerca de 80 por cento na maioria dos estudos) e as baixas capacidades de testar. Em consequência, é muito provável que no Brasil, como também em muitos outros países da América Latina, as infecções por Covid-19 tenham sido muito mais generalizadas do que podem captar os dados oficiais.

A taxa de infecções não detectadas deve ser particularmente alta entre os jovens, bem como nos entornos rurais e urbanos pobres, onde as infraestruturas de atenção médica insuficientes provavelmente se cruzam com a evitação dos testes, já que a quarentena obrigatória é vista como incompatível com os imperativos de ganhos dos trabalhadores informais ou vendedores ambulantes. Em consequência, as infecções de Covid-19 passadas mediaram a imunidade parcial, complementando a chegada dos programas de vacinas, mas a um custo desesperador em termos de sofrimento individual e transtornos sociais.

A forma de saber mais sobre a presença de infecções passadas são os estudos sobre "soropositividade", ou seja, análises de sangue que mostrem anticorpos de infecções passadas, sem importar se foi sintomática ou não, e sem importar se o caso foi informado ou não. Infelizmente, esses estudos não estão disponíveis de maneira sistemática para todo o continente. Mas alguns estudos de casos mostram altas taxas de "infecções ocultas". Por exemplo, um estudo de março de 2021 na região de San Martín, no norte do Peru, mostrou uma soropositividade geral de 59.0 por cento, divergindo substancialmente da incidência reportada (Moreira-Soto et al. 2021). Sem embargo, os estudos anteriores, de 2020, que informaram impressionantes taxas de soropositividade ao redor de 70 por cento, de Iquitos, na Amazônia peruana (Alvarez-Antonio et al.2021) ou Manaus, na Amazônia brasileira (Buss et al.2021) devem ser olhados com cautela. As provas de anticorpos utilizadas na América Latina frequentemente não estão desenhadas nem validadas para seu uso em regiões tropicais e podem dar lugar a falsos positivos, como se mostra em Moreira-Soto et al. (2021) e Yadouleton et al. (2021) (Drexler, coautor de ambos). Isto pode explicar, em parte, os novos surtos em Iquitos e Manaus, quando alguns pensavam que já se havia alcançado a imunidade coletiva.

Apesar destas advertências, a imunidade (parcial) na América Latina provavelmente não provenha só da vacinação, mas também das altas taxas dos que já tiveram a infecção por Covid-19, sintomática ou não, detectada ou não.[ 1 ] Isto também ajuda a explicar por que a chegada da variante Delta causou tantos estragos no Caribe: aqui, inicialmente, a pandemia tinha sido mais bem controlada que em outros lugares. A Dominica, por exemplo, não teve de notificar uma só morte durante mais de um ano e meio depois do surto da pandemia, e outros Estados insulares anglófonos tinham taxas de infecção e mortalidade igualmente baixas e impressionantes.

Precisamente por esse êxito, a variante Delta encontrou no Caribe uma população em que só os vacinados tinham alguma imunidade, e muito poucos dos não vacinados. Cabe assinalar que, felizmente, em toda a América Latina e Caribe, um alto número de infecções não se traduz em taxas de mortalidade tão altas como as observadas durante as primeiras fases da pandemia. Isto se deve ao aumento da vacinação dos anciãos e outros estratos da população em risco.

Uma mistura complexa de vacinas

Compreender o curso da pandemia também requer analisar quais vacinas foram utilizadas na região. Elas podem ser divididas em quatro categorias:

·            A vacinas vetorizadas, como as de AstraZeneca, Johnson & Johnson ou a russa Sputnik (vetores de adenovírus que levam o gene que codifica a proteína da superfície da espiga do novo coronavírus)

·            As vacinas de RNAm, como as da Pfizer / BioNTech e Moderna (um RNA mensageiro modificado, que codifica a proteína de pico)

·            As vacinas inativadas, como SinoVac e Sinopharm (que dependem do SARS-CoV-2 cultivado, que se inativa quimicamente, por exemplo, com formaldeído)

·            As vacinas baseadas em subunidades proteicas, como as de Cuba, Abdala e Soberana (que dependem do domínio de união ao receptor da proteína de pico, no caso da Soberana, acoplado ao toxóide tetânico, para aumentar a imunogenicidade).

Cada uma dessas formulações de vacinas tem suas vantagens e desvantagens, no contexto latino-americano. As vacinas de RNAm demonstraram uma eficácia extremamente alta na prevenção de enfermidades, mas requerem armazenamento a temperaturas muito baixas. Durante os primeiros dias da pandemia, essas vacinas de RNAm não estavam disponíveis, nem eram manejáveis logisticamente na maioria dos países da região. As autoridades russas ofereceram a Sputnik desde o princípio, mas as negociações geopolíticas limitaram a disponibilidade e não permitiram um uso generalizado na região. As vacinas inativadas produzidas na China estavam disponíveis e eram acessíveis e, portanto, formaram a coluna vertebral dos programas de vacinação precoce. As duas vacinas cubanas se baseiam em uma tecnologia relativamente mais simples e, por isso, são bastante fáceis de produzir, armazenar e administrar, inclusive requerendo várias injeções cada uma.

Portanto todas estas vacinas oferecem certa proteção contra a Covid-19, mas com diferentes níveis de eficácia. No contexto latino-americano, isto ficou mais claro, quando o Chile, que até então contava com 93% de dependência da vacina SinoVac, sofreu uma nova onda de infecções, em abril, apesar de ter, até aquele momento, a cobertura de vacinação mais alta da América Latina (50% da população ter recebido pelo menos uma dose). Isto bem pode estar associado a uma eficácia relativamente menor das vacinas inativadas, devido às mudanças na estrutura da proteína causadas pelos produtos químicos utilizados para a inativação do vírus, o que proporciona uma imunogenicidade reduzida. Para conter essa onda mortal, o país teve de voltar às intervenções não farmacêuticas, como as medidas de bloqueio, o que, por sua vez, contribuiu para a grave crise econômica que o país, como toda a América Latina, sofreu consequência da pandemia. No final de 2021, RNAm e as vacinas vivas vetorizadas se tornaram mais disponíveis, e a maioria dos países chegou a utilizar um amplo espectro de formulações de vacinas, misturando-as com êxito.

Vacinas: das doações à produção nacional

Durante 2020 e princípios de 2021, a Europa e os EUA se apropriaram da maior parte das vacinas produzidas pelas empresas ocidentais para suas próprias populações, e a maioria dos países da América Latina recorreram à China, Índia e Rússia. Entretanto, com o tempo, a diplomacia das vacinas mudou de cor. Com sua campanha nacional de vacinação estancada, Washington está passando milhões de doses excessivas a outros países. Os Estados Unidos se converteram agora no principal doador de vacinas para a América Latina (Harrison 2021). Mais além das doações, os países latino-americanos também buscaram adquirir diretamente dos produtores, bem como através do mecanismo multilateral COVAX, em suas diversas formas.

A COVAX, a que a Europa, os Estados Unidos e outras nações desenvolvidas prometeram bilhões de euros, teve inicialmente um começo lento. Para os fornecimentos, baseou-se em grande medida na produção de vacinas da Índia. Entretanto, com o surto massivo de Covid-19 naquele país em abril, foram suspensas todas as exportações de vacinas, para atender primeiro a demanda interna. Inclusive, se a COVAX, em colaboração com a OPS, distribuiu mais de 20 milhões de doses de vacinas para a América Latina e o Caribe, ainda está muito atrás do que foi planejado e prometido originalmente. Apesar de as entregas estarem aumentando, a decepção com a COVAX ainda pesa muito em toda a região. Uma consequência é que a OPS chegou a acordos separados, para comprar milhões de doses das vacinas chinesas Sinopharm e Sinovac, bem como também de AstraZeneca.

As iniciativas para o desenvolvimento local de vacinas contra a Covid-19 ou a produção autorizada de vacinas existentes demonstraram ser mais complexas do que se esperava inicialmente. Sem embargo, um projeto mexicano-argentino de colaboração com AstraZeneca informou ter enviado seu primeiro lote de um milhão de vacinas produzidas localmente à Argentina, Belize, Bolívia e Paraguai, em junho de 2021 (Navarro 2021). Além disso, as vacinas de Cuba são um caso diferente, já que não se produzem sob licença de companhias internacionais, mas são desenvolvimentos originais do setor biotecnológico da Ilha, uma conquista impressionante, dadas as limitações econômicas do país e o fato de que os Estados muito mais ricos, e os mais ricos do mundo, as empresas farmacêuticas, não conseguiram isso.

Sem embargo, como a produção massiva da vacina tomou mais tempo que o planejado, a Ilha começou tarde sua campanha de vacinação, pagando um alto preço por isso. A chegada da variante Delta, em junho de 2021, provocou uma onda de infeções que causou estragos no setor da saúde de Cuba, tradicionalmente o orgulho do país. Se Cuba inicialmente ganhou reputação internacional, ao enviar médicos e trabalhadores da saúde ao exterior, para lutar contra a pandemia, agora tinha de buscar apoio médico e humanitário do exterior.

Embora as vacinas de Cuba ainda não tenham recebido o reconhecimento da Organização Mundial da Saúde, passaram pela prova de sua implementação prática. Uma vez que começou a campanha de vacinação da Ilha, gradualmente diminuiu a curva de infecções. A eficácia frente à variante Delta pode eventualmente ser menor que os 90 por cento anunciados oficialmente depois dos ensaios clínicos, mas as vacinas cubanas foram claramente fundamentais para controlar a pandemia.

Cuba também se converteu no primeiro país do mundo em vacinar crianças a partir de dois anos. Para o final de 2021, é provável que a Ilha tenha vacinado completamente 90 por cento de sua população. Com a demanda interna coberta, foram exportadas as primeiras remessas de vacinas cubanas à Venezuela e Vietnã. Embora seja provável que não obtenham reconhecimento na Europa ou EUA, no curto prazo, as vacinas cubanas podem ser uma adição útil e de baixo custo nas campanhas de vacinação na América Latina e no Sul Global em geral.

Sem embargo, a América Latina também necessitará ampliar sua própria capacidade para desenvolver e produzir vacinas. A OPS selecionou dois centros biomédicos, na Argentina e no Brasil, como centros regionais para desenvolver e produzir vacinas de RNAm.[ 2 ] Em meados de outubro de 2021, o México firmou um acordo com a Rússia, para produzir a vacina Sputnik em laboratórios estatais. A Pfizer / BioNTech anunciou o início da produção, junto com a corporação Eurofarma do Brasil, com a projeção de pelo menos 100 milhões de doses anuais para distribuição na região (Burger y Mishra 2021).

O que se deve fazer?

É possível que a maior parte da América Latina já tenha passado pelo pior: o drama das infecções fora de controle, os hospitais tomados e um número de mortos contado em centenas de milhares, pode ser que não aconteça de novo. Sem embargo, não sabemos se as novas mutações do SARS-CoV-2 continuarão prosperando entre as populações parcialmente imunes, como sugerem alguns estudos (Baj et al. 2021). Há muitas coisas sobre o novo coronavírus que ainda não entendemos totalmente.

Independentemente, a pandemia está longe de terminar. Terá efeitos duradouros na saúde das pessoas, que ainda são difíceis de avaliar. É provável que as intervenções não farmacêuticas, desde o uso de máscaras até as medidas de distanciamento social, continuem sendo indispensáveis em muitos lugares. Abrir-se de novo às viagens e ao turismo implica o risco de revitalizar as curvas de infecção. Além disso, a pandemia criou transtornos econômicos e sociais, agudizou as desigualdades socioeconômicas, aumentou a violência de gênero e trouxe uma série de outras consequências que também pesam muito no futuro da região. Não só os sistemas de saúde da América Latina, mas, em termos mais gerais, as sociedades e economias da região estarão lutando contra a Covid-19 durante anos, talvez décadas, pela frente.

O que, sim, sabemos: a imunidade, seja mediante vacinação, infecções passadas, ou a combinação de ambas, não durará para sempre. No caso da febre amarela, a infecção infantil proporciona imunidade permanente e acredita-se que o efeito de uma só dose dura toda a vida. Ao contrário, a imunidade à Covid-19 diminuirá cedo ou tarde. Como já sabemos isto, podemos preparar-nos com antecipação. Será necessário incorporar os reforços de vacinação à provisão de atenção médica de rotina, se quisermos evitar novas rodadas de surtos mortais, e tomar as medidas políticas necessárias para enfrentá-los.

Estão sendo desenvolvidos novos medicamentos, mas por enquanto não há uma fórmula mágica à vista. O molnupiravir, que recentemente solicitou a autorização de uso de emergência nos EUA, pode reduzir significativamente o risco de hospitalização ou morte, mas só se a infecção é detectada em uma etapa precoce, e a medicação é administrada rapidamente. Ademais, ainda não se compreende completamente o perfil de seguridade da droga. Do mesmo modo que com as vacinas anteriores, os países ricos podem apropriar-se dos primeiros lotes produzidos por eles mesmos, e é provável que os preços sejam proibitivamente altos para grande parte da população da América Latina.

A pandemia evidenciou deficiências estruturais cruciais que os países latino-americanos deverão abordar, se desejarem ter um futuro melhor:

·            É necessário superar as crônicas estruturas disfuncionais e de financiamento insuficiente dos sistemas de saúde pública, para que possam proporcionar serviços de saúde eficazes à cidadania em geral, não só aos mais ricos.

·            A região deverá incrementar a capacidade de desenvolver e produzir em massa suas próprias vacinas, equipamentos de diagnóstico e tecnologia de RNAm, para reduzir sua dependência em relação a provedores estrangeiros.

·            A cooperação e o intercâmbio científico dentro da região devem ser mais rápidos e mais institucionalizados, seja como parte ou como complemento dos esquemas supranacionais existentes.

·            Dado que estão sendo produzidas vacinas na região, deveria ser facilitado seu comércio. As vacinas fabricadas em Cuba não devem ser consideradas por critérios ideológicos, e sim médicos. Como tais, podem formar uma parte vital da carteira de vacinas que o continente necessitará durante muitos anos.

·            As medidas ad hoc de política social que ajudaram a expandir significativamente a cobertura (Blofield et al. 2020) não devem ser abandonadas assim que a sensação de emergência retroceda, mas devem ser vistas como uma oportunidade para fazer que as redes de seguridade social permanentes sejam mais resilientes e inclusivas.

·            As severas quedas observadas no PIB e nos níveis de vida devem ser revertidas mediante políticas que estejam realmente à altura da promessa de “reconstruir melhor”, ou seja, que conduzam a economias mais equitativas e sustentáveis.

A pandemia também destacou a importância da estabilidade política, da integridade pessoal e de um discurso público baseado em fatos, mais além dos ganhos partidários no curto prazo ou da desinformação escancarada.

A cooperação internacional com atores de fora da região continuará sendo importante de muitas maneiras. Nas primeiras fases da pandemia, a COVAX não cumpriu as expectativas. Sem embargo, à medida que aumente a produção mundial de vacinas, poderá ser um fator chave para o acesso amplo e equitativo às vacinas. Isto é certo não só na aguda crise atual, mas também no futuro próximo. A COVAX tem o potencial de transpor as divisões políticas, que em tempos de pandemia deveriam ser postas de lado. Por exemplo, a iniciativa proporcionou vacinas à Venezuela, ao mesmo tempo em que o governo dos Estados Unidos excluiu explicitamente esse país de suas doações bilaterais de vacinas.

A pesquisa sobre a Covid-19 y, mais amplamente sobre enfermidades infecciosas, é uma tarefa que requer um forte compromisso com a cooperação e o intercâmbio científico transnacional. Isto inclui financiamento combinado para esforços de pesquisa conjuntos, mas também apoio para infraestrutura de laboratório e capacidades de diagnóstico em toda a América Latina. Uma dessas iniciativas é o “Centro Germano-Latino-americano de Pesquisa e Capacitação em Infecções e Epidemiologia” (GLACIER), no qual participam ambos os autores e que tem como objetivo facilitar a aprendizagem mútua e o intercâmbio de conhecimentos entre universidades e centros de pesquisa na Alemanha, Cuba, México e toda a América Central.

O autor suíço Friedrich Dürrenmatt, no epílogo de seu drama de 1962, Os físicos, afirmou: “O que concerne a todos, somente todos podem resolver. Cada tentativa individual de resolver de forma isolada o que preocupa a todos deve falhar". Não existe uma solução nacional para uma pandemia. Enquanto o SARS-Cov2 permanecer sem controle em qualquer parte do mundo, continuará seu processo de mutação, o que porá potencialmente em risco a efetividade das vacinas e outras medidas. A luta contra as enfermidades infecciosas e, mais amplamente, pela saúde pública mundial, é, então, uma preocupação que “somente todos podem resolver”.


*Márcia é integrante do Comitê Carioca de Solidariedade a Cuba   http://www.cubadebate.cu/especiales/2021/10/29/expertos-alemanes-recomiendan-vacunas-cubanas-contra-la-covid-19/



1.         Notas de pé de página
Estudos recentes mostram que a combinação de infecção seguida da administração de uma vacina de RNAm oferece uma proteção especialmente boa, também contra novas variantes como Delta (Schmidt et al. 2021).

2.         No Brasil, este é o Instituto de Tecnologia de Imunobiológicos Bio-Manguinhos na Fiocruz, o principal laboratório biomédico do país; na Argentina, Sinergium Biotech, uma empresa biofarmacêutica do setor privado.

·            Referências
Álvarez-Antonio, Carlos et al. (2021), Seroprevalence of Anti-SARS-CoV-2 Antibodies in Iquitos, Peru in July and August, 2020: A Population-Based Study, en: The Lancet Global Health , 9, e925-e931, www.thelancet.com/ action / showPdf? p ii = S2214--109X% 2821% 2900173-X (19 de octubre de 2021).

·            Baj, Andreina y col. (2021), Breakthrough Infections of E484K-Harbouring SARS-CoV-2 Delta Variant, Lombardía, Italia, en: Emerg Infect Dis , 9 de septiembre, publicación electrónica antes de la impresión,wwwnc.cdc.gov/eid/article/27/12/21-1792_article (19 de octubre de 2021).

·            Blofield, Merike, Cecilia Giambruno y Fernando Filgueira (2020), Expansión de políticas en tiempo comprimido: evaluación de la velocidad, amplitud y suficiencia de las medidas de protección social posteriores al Covid-19 en 10 países de América Latina , Serie de políticas sociales 235 de la CEPAL, septiembre dehttps://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/46016/4/S2000593_en.pdf (19 de octubre de 2021).

·            Burger, Ludwig y Manas Mishra (2021), Eurofarma de Brasil fabricará Shots Pfizer Covid-19 para América Latina, en: Reuters , 26 de agosto,www.reuters.com/world/americas/pfizer-biontech-sign-deal-with -brazils-eurofarma-make-covid-19-shots-2021-08-26 / (19 de octubre de 2021).

·            Buss, Lewis F. y col. (2021), Tasa de ataque de tres cuartos de SARS-CoV-2 en la Amazonía brasileña durante una epidemia mayormente no mitigada, en: Science , 371 (6526),www.science.org/doi/pdf/10.1126/science.abe9728 ( 19 de octubre de 2021).

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(Artigo extraído de GIGA-Instituto Alemán de Estudios Globales y de Área | Leibniz-Institut für Globale und Regionale Studien)

 



 

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