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Tradução: Marcia Choueri
Vacinação em El Salvador. Foto: Reuters |
Covid-19 na América Latina : onde estamos e o que vem por aí
À medida que diminuem as taxas de infecção, grande parte da América Latina parece estar dando um respiro, após o ataque de Covid-19. Entretanto o acesso às vacinas é desigual, tanto dentro dos países como entre eles, e a cobertura de vacinas é heterogênea. Combinado com taxas de infecção desiguais e a chegada da variante Delta, altamente contagiosa, impõem-se novos desafios epidemiológicos e políticos.
·
Com
45 milhões de infecções registradas e quase um terço de todas as mortes
relacionadas com Covid-19 do mundo inteiro, a América Latina converteu-se em um
ponto de atenção mundial na pandemia.
·
Embora
o Chile e a Costa Rica tenham taxas de vacinação mais altas que a Alemanha ou
os Estados Unidos, a metade da população da América Latina ainda não recebeu
sua primeira dose de vacina. O que pode ajudar é a grande quantidade de pessoas
que adquiriram alguma imunidade por infecções anteriores por Covid-19, além das
identificadas nas estatísticas oficiais.
·
A
diplomacia das vacinas mudou de cor. Inicialmente, a América Latina dependia dos envios de vacinas da
China, Índia e Rússia. A esta altura, os EUA e a iniciativa multilateral COVAX
converteram-se nos maiores provedores. As políticas deverão
ajustar-se à combinação resultante de vacinas de diferente eficácia e
reconhecimento internacional.
·
Para
reduzir a dependência externa, a região deverá fortalecer sua capacidade de
desenvolver e produzir em massa vacinas, equipamentos de diagnóstico e tecnologia
de ARNm. As
vacinas desenvolvidas em Cuba poderiam passar a formar parte da carteira de
vacinas que o continente necessitará durante muitos anos.
·
A
pandemia evidenciou as debilidades estruturais da região. Deve-se incrementar o
financiamento da saúde pública; devem-se aproveitar as medidas especiais de
política social adotadas durante a pandemia, para fazer que as redes de
seguridade social sejam mais resilientes e inclusivas.
Implicações políticas
Uma
forte campanha de vacinação continua sendo chave para manter a pandemia sob
controle. À medida que a imunidade, seja por infecções anteriores, seja por
vacinas, eventualmente diminua, é possível que a vacinação deva ser integrada
na atenção médica preventiva de rotina. A cooperação que ultrapasse as
dicotomias ideológicas esquerda-direita no diagnóstico epidemiológico, a
pesquisa, a vacinação e a prestação de serviços de saúde deve converter-se em
uma prioridade na região, bem como para os parceiros internacionais.
O drama
latino-americano: o pior já passou?
Apesar
de ser o lar de apenas 8,4 por cento da população mundial, a América Latina e o
Caribe representam quase um terço das mortes relacionadas com a Covid-19 até
agora. E inclui o segundo número de mortes mais alto do mundo entre os
países (Brasil) e a mais alta taxa de mortes per capita registrada no mundo
(Peru; ver Figura 1). A trágica marca de um milhão de mortes em nível regional
foi superada já em maio de 2021.
Mortes confirmadas por milhão de pessoas por Covid 19 |
A
horrenda cifra de mortos na América Latina e Caribe se produz, apesar de sua
população ter uma idade média de 31 anos e, portanto, muito mais jovem que a
dos Estados Unidos (idade média de 38,5 anos) ou Europa (42,5 anos). O
caso do Peru, que durante anos teve algumas das taxas de crescimento econômico
mais altas do continente, destaca que o número de mortos não é uma mera função
do produto interno bruto. Ao contrário, a pandemia expôs brutalmente as
debilidades estruturais da região: sistemas de atenção médica sobrecarregados e
com fundos insuficientes, acesso tardio e limitado às vacinas, desigualdades
sociais profundamente arraigadas, práticas trabalhistas informais extensivas,
dietas pouco saudáveis que levam a uma obesidade generalizada, capacidade
estatal insuficiente e incoerência. Todas as políticas contribuíram para este
doloroso resultado.
Mais
além do drama epidemiológico, as consequências econômicas e sociais da
interrupção do comércio e viagens mundiais, e mais as medidas de bloqueio foram
enormes, desde um forte declínio econômico até o sofrimento psicológico e a
perda do potencial educativo. Um estudo recente estima que mais 22
milhões de pessoas caíram na pobreza na região em 2020, com um impacto
significativo sobre a infância (CEPAL e OPS 2021: 3). Também
destacou que, na que é a região mais desigual do mundo, “a vulnerabilidade
socioeconómica está altamente correlacionada com a gravidade da infecção e a
mortalidade por Covid-19” (CEPAL e OPS 2021: 18).
A pandemia
de Covid-19 também demonstrou que os primeiros avanços não são o mesmo que o
êxito em longo prazo. Israel, o Reino Unido e os Estados Unidos tinham
sido pioneiros na campanha de vacinação; entretanto, no final de 2021, não
apenas suas taxas de vacinação estancaram, mas suas infecções por Covid-19 per
capita são mais altas que as da América do Sul. Certamente, aqui é
preciso ter em conta uma subnotificação significativa, devido a testes
insuficientes ou evitação de testes. Mas, ainda assim: enquanto, em Israel,
Reino Unido e nos EUA, as taxas de infecção aumentaram desde o verão de 2021,
na América do Sul, as taxas de infecção, hospitalização e morte informadas
diminuíram. Há três fatores principais que provavelmente expliquem essa
tendência:
·
O
efeito estacional, já que no hemisfério Sul já passou a temporada de inverno.
·
O
avanço das campanhas de vacinação. A maioria dos países latino-americanos já
atingiram aproximadamente taxas de cobertura de vacinação entre 30 e 60 por
cento da população, que é muito mais alta que em outras regiões tropicais, como
a África subsaariana.
·
Uma
grande parte da população adquiriu algum nível de imunidade por ter passado por
uma infecção, tenha sido diagnosticada ou não.
Sem
embargo, a variante Delta altamente contagiosa do SARS-CoV-2, que já arrasou na
maior parte do mundo, agora está fazendo sua entrada completa na América do
Sul. Acaba de chegar no princípio deste verão ao Caribe, que por sua vez está
vendo um aumento vertiginoso das taxas de contágio. Barbados atualmente encabeça
as tabelas mundiais, com uma taxa de incidência de sete dias de mais de 700
contágios por cada 100.000 pessoas.
Então,
quanta luz há no final do túnel para a América Latina? Já passou o pior, de
verdade? Para abordar esta questão, refletiremos sobre o desigual processo de
vacinação na região; os níveis heterogêneos de infecções passadas que dão algum
nível de imunidade; a chegada tardia da variante Delta em partes da região; e a
complexa combinação de vacinas aplicadas e suas implicações. Depois, abordaremos
a necessidade de fortalecer a preparação para uma pandemia, para superar a
dependência externa, antes de identificar finalmente os passos necessários para
corrigir o dano social e econômico que a pandemia causou em nível regional.
Vacinação em grande
escala, mas desigual
A
absoluta escassez de vacinas que marca a fase inicial da pandemia deu lugar
desde então a um processo de vacinação muito desigual na região, entre países,
dentro dos países e também no que se refere aos tipos de vacina disponíveis.
Nos últimos meses, quase todos os países da América Latina avançaram
significativamente em seus programas de vacinação (ver Figura 2 a seguir). Mas
vale a pena distinguir entre três sub-regiões aqui:
·
Em
toda a América do Sul, quase dois terços da população receberam pelo menos sua
primeira injeção.
·
Na
América Central, o panorama é heterogêneo: avanços significativos na Costa
Rica, El Salvador e Panamá; baixas taxas de vacinação na Guatemala, Honduras e
Nicarágua; no México, atingiu-se um termo médio, quase equiparado ao da
Colômbia e Peru, mas claramente inferior ao dos líderes sul-americanos
Argentina, Brasil, Chile e Uruguai.
·
No
Caribe, a diplomacia de vacinas inicialmente inteligente converteu vários
Estados em pioneiros na vacinação (Hoffmann 2021). Sem embargo, essas campanhas
logo se estancaram; a estas alturas, as taxas de vacinação estão muito atrás
das taxas do continente latino-americano. Cuba é uma exceção notável: começou a
vacinação mais tarde que outros, mas quase 90 por cento da população recebeu
pelo menos a primeira dose.
Em
muitos lugares, a disponibilidade de vacinas continua sendo um gargalo. Outro
problema, também distribuído de maneira muito desigual, é a rejeição às
vacinas. No Brasil, por exemplo, as instituições de saúde pública têm
uma antiga reputação de progresso social e, ao longo das décadas, as vacinas
adquiriram uma ampla aceitação. Isso prevaleceu sobre a desinformação das redes
sociais e a atitude negacionista do governo federal. As metrópoles do Rio de
Janeiro e São Paulo agora contam com taxas de vacinação mais altas que Berlim
ou Nova York.
Vacinação na América Latina no fechamento de 18 de outubro de 2021. Fonte: Our World in Data |
Entretanto,
em outros países, incluídos muitos do Caribe, as autoridades sanitárias estão
lutando contra o ceticismo frente às vacinas, inclusive quando a variante Delta
ataca com força na região. No pequeno estado insular da Dominica, por exemplo,
em 1º de abril de 2021, cerca de 25 por cento da população havia recebido sua
primeira dose, colocando o país na vanguarda. Mas, de lá pra cá, a campanha de
vacinação avançou a passo de tartaruga: menos de 35% em 1º de outubro de 2021.
A Dra. Carissa Etienne, Diretora da Organização Pan-americana da Saúde (OPS) e
nascida na Dominica, apontou recentemente: “Inclusive quando há vacinas
disponíveis, as pessoas não se apresentam” (OPS 2021).
Na
Jamaica, a taxa de vacinação é ainda menor. Menos de 10 por cento da população
se vacinou por completo. Segundo uma pesquisa de 2020, 72 por cento dos
jamaicanos disseram que não aceitariam uma vacina contra a Covid-19 (citado em
CARPHA 2021: 2). Entretanto as pesquisas não oferecem explicações
satisfatórias. Na que foi realizada pela Agência de Saúde Pública do Caribe, os
entrevistados ofereceram com maior frequência as respostas padrão: que estava
preocupado com os possíveis efeitos secundários; não sabia o suficiente sobre a
vacina; pensou que a vacina foi desenvolvida rápido demais (CARPHA 2021: 11).
Mas em nada disto, nem em sua exposição às redes sociais, a região se
diferencia do resto do mundo.
A entrada atrasada da
variante Delta
Desde
este verão, o predomínio da Delta VOC foi observado em nível mundial, mas não
(ainda) em toda a América do Sul. Na Colômbia, a variante Mu ainda
domina, na Bolívia, a variante Gama, enquanto que no Peru a variante Lambda
mantém uma forte presença. Se estas atrasaram o surgimento da variante Delta,
ou se sua introdução tardia é simplesmente uma questão de conectividade
internacional reduzida, continua sendo tema de debate. Mas há poucas dúvidas de
que, com o tempo, o aumento da transmissibilidade da variante Delta fará com que
domine nesses países.
No
México, onde a variante Delta se tornou dominante no transcurso deste verão, as
taxas de infecção por Covid-19 aumentaram, mas não de maneira dramática, nem
por muito tempo. A ministra de Saúde argentina, Carla Vizzotti, advertiu que
será impossível evitar que a variante Delta circule no país; de fato, chegou a representar
50 por cento dos casos nas últimas amostras. No Brasil, muitos temiam que a
variante Delta produzisse outra onda de devastação, num país que já chorou
600.000 mortos. Entretanto, mesmo com a variante Delta dominando por completo
neste momento, e apesar de um relaxamento das medidas de distanciamento social,
até agora, não se observou um aumento importante nas taxas de infecção.
Isto é
tanto mais notável, quanto no Caribe o panorama é exatamente o contrário. Este
tinha passado impressionantemente bem através das primeiras ondas da pandemia,
em comparação com a América Latina continental, mas isso mudou, quando a Delta
VOC chegou às ilhas do Caribe neste verão. O primeiro país afetado foi Cuba,
onde as crescentes taxas de infecção levaram o sistema de saúde da ilha à beira
do colapso. Mais recentemente, foram os Estados insulares do Caribe anglófono
que provaram uma explosão de casos, o que atingiu seus sistemas de saúde e os
colocou entre os países com as mais altas incidências de infecção per capita do
mundo (Figura 3).
Casos diários novos de Covid-19 por cada milhão de pessoas |
Imunidade parcial por
infecções passadas
Então, o
que explica essas diferenças regionais? Combinada com taxas de vacinação
insuficientes, a diferença crucial é provavelmente a exposição comparativamente
baixa do Caribe ao vírus, durante o primeiro ano e meio da pandemia. Em
contraste, tanto na América Central como na América do Sul, a terrível pandemia
deixou centenas de milhares de mortos e milhões de infectados. O Brasil,
por exemplo, notificou quase 20 milhões de casos confirmados, até outubro de
2021, mais de 10 por cento da população total do país. Isso pode ser só a ponta
do iceberg, dada a alta proporção de infecções assintomáticas ou leves
(estimadas em cerca de 80 por cento na maioria dos estudos) e as baixas
capacidades de testar. Em consequência, é muito
provável que no Brasil, como também em muitos outros países da América Latina,
as infecções por Covid-19 tenham sido muito mais generalizadas do que podem
captar os dados oficiais.
A taxa de
infecções não detectadas deve ser particularmente alta entre os jovens, bem
como nos entornos rurais e urbanos pobres, onde as infraestruturas de atenção
médica insuficientes provavelmente se cruzam com a evitação dos testes, já que
a quarentena obrigatória é vista como incompatível com os imperativos de ganhos
dos trabalhadores informais ou vendedores ambulantes. Em consequência,
as infecções de Covid-19 passadas mediaram a imunidade parcial, complementando
a chegada dos programas de vacinas, mas a um custo desesperador em termos de
sofrimento individual e transtornos sociais.
A forma
de saber mais sobre a presença de infecções passadas são os estudos sobre
"soropositividade", ou seja, análises de sangue que mostrem
anticorpos de infecções passadas, sem importar se foi sintomática ou não, e sem
importar se o caso foi informado ou não. Infelizmente, esses estudos não estão
disponíveis de maneira sistemática para todo o continente. Mas alguns estudos
de casos mostram altas taxas de "infecções ocultas". Por exemplo, um
estudo de março de 2021 na região de San Martín, no norte do Peru, mostrou uma
soropositividade geral de 59.0 por cento, divergindo substancialmente da
incidência reportada (Moreira-Soto et al. 2021). Sem embargo, os estudos anteriores,
de 2020, que informaram impressionantes taxas de soropositividade ao redor de
70 por cento, de Iquitos, na Amazônia peruana (Alvarez-Antonio et al.2021) ou
Manaus, na Amazônia brasileira (Buss et al.2021) devem ser olhados com cautela.
As provas de anticorpos utilizadas na América Latina frequentemente não estão
desenhadas nem validadas para seu uso em regiões tropicais e podem dar lugar a
falsos positivos, como se mostra em Moreira-Soto et al. (2021) e Yadouleton et
al. (2021) (Drexler, coautor de ambos). Isto pode explicar, em parte, os novos
surtos em Iquitos e Manaus, quando alguns pensavam que já se havia alcançado a
imunidade coletiva.
Apesar
destas advertências, a imunidade (parcial) na América Latina
provavelmente não provenha só da vacinação, mas também das altas taxas dos que
já tiveram a infecção por Covid-19, sintomática ou não, detectada ou não.[
1 ] Isto também ajuda a explicar por que a chegada da variante Delta causou
tantos estragos no Caribe: aqui, inicialmente, a pandemia tinha sido mais bem
controlada que em outros lugares. A Dominica, por exemplo, não teve de
notificar uma só morte durante mais de um ano e meio depois do surto da
pandemia, e outros Estados insulares anglófonos tinham taxas de infecção e
mortalidade igualmente baixas e impressionantes.
Precisamente
por esse êxito, a variante Delta encontrou no Caribe uma população em
que só os vacinados tinham alguma imunidade, e muito poucos dos não vacinados. Cabe
assinalar que, felizmente, em toda a América Latina e Caribe, um alto número de
infecções não se traduz em taxas de mortalidade tão altas como as observadas
durante as primeiras fases da pandemia. Isto se deve ao aumento da vacinação
dos anciãos e outros estratos da população em risco.
Uma mistura complexa
de vacinas
Compreender
o curso da pandemia também requer analisar quais vacinas foram utilizadas na
região. Elas podem ser divididas em quatro categorias:
·
A
vacinas vetorizadas, como as de AstraZeneca, Johnson & Johnson ou a russa
Sputnik (vetores de adenovírus que levam o gene que codifica a proteína da
superfície da espiga do novo coronavírus)
·
As
vacinas de RNAm, como as da Pfizer / BioNTech e Moderna (um RNA mensageiro
modificado, que codifica a proteína de pico)
·
As
vacinas inativadas, como SinoVac e Sinopharm (que dependem do SARS-CoV-2
cultivado, que se inativa quimicamente, por exemplo, com formaldeído)
·
As
vacinas baseadas em subunidades proteicas, como as de Cuba, Abdala e Soberana
(que dependem do domínio de união ao receptor da proteína de pico, no caso da
Soberana, acoplado ao toxóide tetânico, para aumentar a imunogenicidade).
Cada uma
dessas formulações de vacinas tem suas vantagens e desvantagens, no contexto
latino-americano. As vacinas de RNAm demonstraram uma eficácia extremamente
alta na prevenção de enfermidades, mas requerem armazenamento a temperaturas muito
baixas. Durante os primeiros dias da pandemia, essas vacinas de RNAm não
estavam disponíveis, nem eram manejáveis logisticamente na maioria dos países
da região. As autoridades russas ofereceram a Sputnik desde o princípio, mas as
negociações geopolíticas limitaram a disponibilidade e não permitiram um uso
generalizado na região. As vacinas inativadas produzidas na China estavam
disponíveis e eram acessíveis e, portanto, formaram a coluna vertebral dos
programas de vacinação precoce. As duas vacinas cubanas se baseiam em
uma tecnologia relativamente mais simples e, por isso, são bastante fáceis de
produzir, armazenar e administrar, inclusive requerendo várias injeções cada
uma.
Portanto
todas estas vacinas oferecem certa proteção contra a Covid-19, mas com
diferentes níveis de eficácia. No contexto latino-americano, isto ficou mais
claro, quando o Chile, que até então contava com 93% de dependência da vacina
SinoVac, sofreu uma nova onda de infecções, em abril, apesar de ter, até aquele
momento, a cobertura de vacinação mais alta da América Latina (50% da população
ter recebido pelo menos uma dose). Isto bem pode estar associado a uma eficácia
relativamente menor das vacinas inativadas, devido às mudanças na estrutura da
proteína causadas pelos produtos químicos utilizados para a inativação do
vírus, o que proporciona uma imunogenicidade reduzida. Para conter essa onda
mortal, o país teve de voltar às intervenções não farmacêuticas, como as
medidas de bloqueio, o que, por sua vez, contribuiu para a grave crise
econômica que o país, como toda a América Latina, sofreu consequência da
pandemia. No final de 2021, RNAm e as vacinas vivas vetorizadas se tornaram
mais disponíveis, e a maioria dos países chegou a utilizar um amplo espectro de
formulações de vacinas, misturando-as com êxito.
Vacinas: das doações à
produção nacional
Durante
2020 e princípios de 2021, a Europa e os EUA se apropriaram da maior parte das
vacinas produzidas pelas empresas ocidentais para suas próprias populações, e a
maioria dos países da América Latina recorreram à China, Índia e Rússia.
Entretanto, com o tempo, a diplomacia das vacinas mudou de cor. Com sua
campanha nacional de vacinação estancada, Washington está passando milhões de
doses excessivas a outros países. Os Estados Unidos se converteram agora no
principal doador de vacinas para a América Latina (Harrison 2021).
Mais além das doações, os países latino-americanos também buscaram adquirir
diretamente dos produtores, bem como através do mecanismo multilateral COVAX,
em suas diversas formas.
A COVAX, a
que a Europa, os Estados Unidos e outras nações desenvolvidas prometeram
bilhões de euros, teve inicialmente um começo lento. Para os fornecimentos,
baseou-se em grande medida na produção de vacinas da Índia. Entretanto, com o
surto massivo de Covid-19 naquele país em abril, foram suspensas todas as
exportações de vacinas, para atender primeiro a demanda interna. Inclusive,
se a COVAX, em colaboração com a OPS, distribuiu mais de 20 milhões de doses de
vacinas para a América Latina e o Caribe, ainda está muito atrás do que foi
planejado e prometido originalmente. Apesar de as entregas estarem aumentando,
a decepção com a COVAX ainda pesa muito em toda a região. Uma
consequência é que a OPS chegou a acordos separados, para comprar milhões de
doses das vacinas chinesas Sinopharm e Sinovac, bem como também de AstraZeneca.
As
iniciativas para o desenvolvimento local de vacinas contra a Covid-19 ou a
produção autorizada de vacinas existentes demonstraram ser mais complexas do
que se esperava inicialmente. Sem embargo, um projeto mexicano-argentino de
colaboração com AstraZeneca informou ter enviado seu primeiro lote de um milhão
de vacinas produzidas localmente à Argentina, Belize, Bolívia e Paraguai, em
junho de 2021 (Navarro 2021). Além disso, as vacinas de Cuba são um
caso diferente, já que não se produzem sob licença de companhias
internacionais, mas são desenvolvimentos originais do setor biotecnológico da
Ilha, uma conquista impressionante, dadas as limitações econômicas do país e o
fato de que os Estados muito mais ricos, e os mais ricos do mundo, as empresas
farmacêuticas, não conseguiram isso.
Sem
embargo, como a produção massiva da vacina tomou mais tempo que o planejado, a
Ilha começou tarde sua campanha de vacinação, pagando um alto preço por isso. A
chegada da variante Delta, em junho de 2021, provocou uma onda de infeções que
causou estragos no setor da saúde de Cuba, tradicionalmente o orgulho do país.
Se Cuba inicialmente ganhou reputação internacional, ao enviar médicos e trabalhadores
da saúde ao exterior, para lutar contra a pandemia, agora tinha de buscar apoio
médico e humanitário do exterior.
Embora
as vacinas de Cuba ainda não tenham recebido o reconhecimento da Organização
Mundial da Saúde, passaram pela prova de sua implementação prática. Uma
vez que começou a campanha de vacinação da Ilha, gradualmente diminuiu a curva
de infecções. A eficácia frente à variante Delta pode eventualmente ser menor
que os 90 por cento anunciados oficialmente depois dos ensaios clínicos, mas as
vacinas cubanas foram claramente fundamentais para controlar a pandemia.
Cuba
também se converteu no primeiro país do mundo em vacinar crianças a partir de
dois anos. Para o final de 2021, é provável que a Ilha tenha vacinado
completamente 90 por cento de sua população. Com a demanda interna
coberta, foram exportadas as primeiras remessas de vacinas cubanas à Venezuela
e Vietnã. Embora seja provável que não obtenham reconhecimento na Europa ou
EUA, no curto prazo, as vacinas cubanas podem ser uma adição útil e de baixo
custo nas campanhas de vacinação na América Latina e no Sul Global em geral.
Sem
embargo, a América Latina também necessitará ampliar sua própria capacidade
para desenvolver e produzir vacinas. A OPS selecionou dois centros biomédicos,
na Argentina e no Brasil, como centros regionais para desenvolver e produzir
vacinas de RNAm.[ 2 ] Em meados de outubro de 2021, o México firmou um acordo
com a Rússia, para produzir a vacina Sputnik em laboratórios estatais. A Pfizer
/ BioNTech anunciou o início da produção, junto com a corporação Eurofarma do
Brasil, com a projeção de pelo menos 100 milhões de doses anuais para
distribuição na região (Burger y Mishra 2021).
O que se deve fazer?
É
possível que a maior parte da América Latina já tenha passado pelo pior: o
drama das infecções fora de controle, os hospitais tomados e um número de
mortos contado em centenas de milhares, pode ser que não aconteça de novo. Sem
embargo, não sabemos se as novas mutações do SARS-CoV-2 continuarão prosperando
entre as populações parcialmente imunes, como sugerem alguns estudos (Baj et
al. 2021). Há muitas coisas sobre o novo coronavírus que ainda não entendemos
totalmente.
Independentemente,
a pandemia está longe de terminar. Terá efeitos duradouros na saúde das
pessoas, que ainda são difíceis de avaliar. É provável que as intervenções não
farmacêuticas, desde o uso de máscaras até as medidas de distanciamento social,
continuem sendo indispensáveis em muitos lugares. Abrir-se de novo às
viagens e ao turismo implica o risco de revitalizar as curvas de infecção. Além
disso, a pandemia criou transtornos econômicos e sociais, agudizou as
desigualdades socioeconômicas, aumentou a violência de gênero e trouxe uma
série de outras consequências que também pesam muito no futuro da região. Não
só os sistemas de saúde da América Latina, mas, em termos mais gerais, as
sociedades e economias da região estarão lutando contra a Covid-19 durante
anos, talvez décadas, pela frente.
O que, sim,
sabemos: a imunidade, seja mediante vacinação, infecções passadas, ou a
combinação de ambas, não durará para sempre. No caso da febre amarela, a
infecção infantil proporciona imunidade permanente e acredita-se que o efeito
de uma só dose dura toda a vida. Ao contrário, a imunidade à Covid-19 diminuirá
cedo ou tarde. Como já sabemos isto, podemos preparar-nos com
antecipação. Será necessário incorporar os reforços de vacinação à provisão de
atenção médica de rotina, se quisermos evitar novas rodadas de surtos mortais,
e tomar as medidas políticas necessárias para enfrentá-los.
Estão
sendo desenvolvidos novos medicamentos, mas por enquanto não há uma fórmula
mágica à vista. O molnupiravir, que recentemente solicitou a
autorização de uso de emergência nos EUA, pode reduzir significativamente o
risco de hospitalização ou morte, mas só se a infecção é detectada em uma etapa
precoce, e a medicação é administrada rapidamente. Ademais, ainda não se
compreende completamente o perfil de seguridade da droga. Do mesmo modo que com
as vacinas anteriores, os países ricos podem apropriar-se dos primeiros lotes
produzidos por eles mesmos, e é provável que os preços sejam proibitivamente
altos para grande parte da população da América Latina.
A
pandemia evidenciou deficiências estruturais cruciais que os países
latino-americanos deverão abordar, se desejarem ter um futuro melhor:
·
É
necessário superar as crônicas estruturas disfuncionais e de financiamento
insuficiente dos sistemas de saúde pública, para que possam proporcionar
serviços de saúde eficazes à cidadania em geral, não só aos mais ricos.
·
A
região deverá incrementar a capacidade de desenvolver e produzir em massa suas
próprias vacinas, equipamentos de diagnóstico e tecnologia de RNAm, para
reduzir sua dependência em relação a provedores estrangeiros.
·
A
cooperação e o intercâmbio científico dentro da região devem ser mais rápidos e
mais institucionalizados, seja como parte ou como complemento dos esquemas
supranacionais existentes.
·
As
medidas ad hoc de política social que ajudaram a expandir significativamente a
cobertura (Blofield et al. 2020) não devem ser abandonadas assim que a sensação
de emergência retroceda, mas devem ser vistas como uma oportunidade para fazer
que as redes de seguridade social permanentes sejam mais resilientes e
inclusivas.
·
As
severas quedas observadas no PIB e nos níveis de vida devem ser revertidas
mediante políticas que estejam realmente à altura da promessa de “reconstruir
melhor”, ou seja, que conduzam a economias mais equitativas e sustentáveis.
A
pandemia também destacou a importância da estabilidade política, da integridade
pessoal e de um discurso público baseado em fatos, mais além dos ganhos
partidários no curto prazo ou da desinformação escancarada.
A cooperação
internacional com atores de fora da região continuará sendo importante de
muitas maneiras. Nas primeiras fases da pandemia, a COVAX não cumpriu as
expectativas. Sem embargo, à medida que aumente a produção mundial de vacinas,
poderá ser um fator chave para o acesso amplo e equitativo às vacinas. Isto é
certo não só na aguda crise atual, mas também no futuro próximo. A COVAX tem o
potencial de transpor as divisões políticas, que em tempos de pandemia deveriam
ser postas de lado. Por exemplo, a iniciativa proporcionou vacinas à Venezuela,
ao mesmo tempo em que o governo dos Estados Unidos excluiu explicitamente esse
país de suas doações bilaterais de vacinas.
A
pesquisa sobre a Covid-19 y, mais amplamente sobre enfermidades infecciosas, é
uma tarefa que requer um forte compromisso com a cooperação e o intercâmbio
científico transnacional. Isto inclui financiamento combinado para esforços de
pesquisa conjuntos, mas também apoio para infraestrutura de laboratório e
capacidades de diagnóstico em toda a América Latina. Uma dessas iniciativas é o
“Centro Germano-Latino-americano de Pesquisa e Capacitação em Infecções e
Epidemiologia” (GLACIER), no qual participam ambos os autores e que tem como
objetivo facilitar a aprendizagem mútua e o intercâmbio de conhecimentos entre
universidades e centros de pesquisa na Alemanha, Cuba, México e toda a América
Central.
O autor
suíço Friedrich Dürrenmatt, no epílogo de seu drama de 1962, Os físicos,
afirmou: “O que concerne a todos, somente todos podem resolver. Cada tentativa
individual de resolver de forma isolada o que preocupa a todos deve
falhar". Não existe uma solução nacional para uma pandemia. Enquanto o
SARS-Cov2 permanecer sem controle em qualquer parte do mundo, continuará seu
processo de mutação, o que porá potencialmente em risco a efetividade das
vacinas e outras medidas. A luta contra as enfermidades infecciosas e, mais
amplamente, pela saúde pública mundial, é, então, uma preocupação que “somente
todos podem resolver”.
*Márcia é integrante do Comitê Carioca de Solidariedade a Cuba http://www.cubadebate.cu/especiales/2021/10/29/expertos-alemanes-recomiendan-vacunas-cubanas-contra-la-covid-19/
1.
Notas de pé de
página
Estudos recentes mostram que a combinação de infecção seguida da administração
de uma vacina de RNAm oferece uma proteção especialmente boa, também contra
novas variantes como Delta (Schmidt et al. 2021).
2.
No
Brasil, este é o Instituto de Tecnologia de Imunobiológicos Bio-Manguinhos na
Fiocruz, o principal laboratório biomédico do país; na Argentina, Sinergium
Biotech, uma empresa biofarmacêutica do setor privado.
·
Referências
Álvarez-Antonio, Carlos et al. (2021), Seroprevalence of Anti-SARS-CoV-2
Antibodies in Iquitos, Peru in July and August, 2020: A Population-Based Study,
en: The Lancet Global Health , 9, e925-e931, www.thelancet.com/ action /
showPdf? p ii = S2214--109X% 2821% 2900173-X (19 de octubre de 2021).
·
Baj, Andreina y col. (2021),
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(Artigo extraído de GIGA-Instituto Alemán de Estudios Globales y
de Área | Leibniz-Institut für Globale und Regionale Studien)
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