1 de dez. de 2019

Militares e Policiais na Bolívia: rancor histórico nas entranhas do aparato político fascista





A Bolívia vive um momento mais de descolamento social e político em sua longa história de instabilidade e golpismo cívico-policial-militar. O que lhe ocorre, para além da tragédia que vive este povo heroico, tem demasiados paradoxos para deixar passar por alto. A primeira delas é a até agora incompreensível  aventura destrutiva de um país que entrava no século XXI pela rota inédita de ser ela mesma. Nunca como agora o país tinha conseguido o que muitos outros invejam para si mesmos: crescimento econômico sustentado, estabilidade política, unidade nacional em construção e inserção internacional respeitável, além dos lucros sociais e a derrota secular das duas maldições do subdesenvolvimento: extrema pobreza e analfabetismo.
O segundo paradoxo é sustentar que teve sucessão constitucional quando na realidade o que ocorreu foi um assalto planificado ao poder. Desde a realização de votações sucessivas no país como simulação democrática até o motim policial o que teve foi um manejo do tabuleiro político espertamente  orquestrado, desde tempo atrás, nas entranhas do império com a cumplicidade das elites regionais racistas que se fundem  em uma religiosidade quase macabra.
Jeanine Añez, autodenominada “Presidenta Constitucional”, explica uma ascensão ilegal e ilegítima ao poder que não é mais que o corolário do desenho golpista tecido finamente durante os últimos 3 ou 4 anos. Este arremate fascista foi precedido por um conjunto de operações encobertas que se despregaram sistematicamente e que os órgãos de inteligência foram incapazes de advertir ou  os encobriram.
O terceiro paradoxo é o triste papel dos meios de comunicação que quando se lhes criticam se chamam democráticos, transparentes e independentes. Hoje, mal são um manejo inescrupuloso e ruim de informação paga ou para  dizer brevemente constituem uma maquinaria de manipulação vergonhosa a serviço dos interesses empresariais monopólicos. Junto à armadura da mentira sistemática, dirigida desde a diplomacia pública norte-americana, as redes sociais cumpriram o perverso papel de filtrar desproporcionalmente, em conteúdo como em alcance, só a suposta “maldade massista, incluída a fraude descomunal”, encobrindo ao mesmo tempo a brutalidade e a  violência do paramilitarismo comiteísta cruceño, dos bandos armados  ou do cúmplice paceño.
O quarto paradoxo tem a ver com o papel da estrutura monopólica da violência legítima destinada a proteger o Estado e o cidadão quando na realidade o que agora produz é violência, morte e terror estatal para sustentar um regime ilegítimo contra a vontade popular majoritária.  Nunca como agora policiais e militares envolvidos na suposta defesa da democracia e no controle do protesto de rua levaram tão longe suas armas repressivas comandados desde “quartéis de guerra”.
Acobertados pelo novo regime violento, militares e polícias convivem fraternizados pelo sangue e o luto de dezenas de bolivianos no meio de seus ódios ancestrais com um comando político transitório que ignora seu controverso passado.
Como entender que militares e polícias, cujo rancor recíproco ao longo de mais de um século, que marcou a fogo suas distantes histórias institucionais, suportem hoje a estrutura gelatinosa de um regime que só tem produzido mortos e feridos?
Para além do surrealismo que nos envolve, polícias e militares livram no meio do golpe de Estado uma guerra silenciosa que não parece cessar apesar da quantidade de mortos que leva o selo de suas armas letais. O rancor que envolve ambas instituições cuja história não cessa  de se derramar no século XXI tende a se constituir no limite real do regime golpista.
Os sintomas do rancor começam a surgir no meio das turbulentas manifestações sociais. Ambas frentes repressivas se acusam mutuamente de ter disparado contra civis indefesos responsabilizando um ao outro  no meio da convulsão social. Polícias acusando  militares e militares acusando  polícias é uma constante que tende a se aprofundar à medida que passam as horas.
O tragicômico papel da Promotoria Geral do Estado aparecendo em cena tratando de acalmar o pânico corporativo com o argumento de que as mortes se produziram por “armas longas” já é um sintoma da crise que se anuncia irreversível. Por sua vez, para evitar mais conflito entre ambos e para distrair a atenção da opinião pública o setor radical do governo, assessorado por agências norte-americanas, apela ao fácil expediente de culpar estrangeiros armados como as FARC, cubanos, colombianos e venezuelanos, pelas mortes que deixam ao longo das forças repressivas oficiais.
A disputa perene por preservar a cercania ao poder político desde ambas as instituições começa a produzir seus próprios cismas internos com as consequências de uma possível débacle do governo golpista e fascista sustentado pelo poder das baionetas, dos gases e do chumbo.
Os militares por dentro

Após 16 anos de ter executado uma dos maiores massacres sangrentos contra o povo do Alto que resultou em sanções penais e encarceramento para os comandos da época, as FFAA retornaram às ruas vestidos com seu inconfundível cáqui norte-americano com a missão de enfrentar a escalada de conflitos sociais em todo o país. No domingo 10 de novembro, o Comandante em Chefe das FFAA, Gral. Ejto Kalimán, aparentemente desconcertado e com voz trêmula ordenou a saída das FFAA às ruas cujo resultado trágico até hoje supera os 20 mortos. A metade das vítimas, majoritariamente jovens, corresponde ao “Massacre de Sacava” do último fim de semana. Nada faz prever que esta decisão conduza a Kalimán  e seus comandantes ao mesmo lugar onde cumprem sentenças seus antecessores responsáveis do massacre sangrento do Alto em outubro do 2003.
A decisão de Kalimán  que contrastou radicalmente com a do presidente Morales constitui uma das expressões maiúsculas da falência educativa e pedagógica das FFAA em situações de crises política. Evo Morales renunciou precisamente para evitar mortes desnecessárias a contrapelo de Kalimán  que dispôs a saída dos militares com as consequências conhecidas. Quem  impôs a Kalimán  a ordem para a saída dos soldados à rua? O que motivou que esta decisão seja modificada 24 horas depois, quando lhe comprometeu a seu Capitão Geral que não moveria nenhuma unidade militar pretextando falta de equipe, munição e agentes químicos?
A autonomia política do Gral Kalimán no momento de maior crise social e política que precipita o golpe definitivo retrata de alguma maneira não só a falência do comando político sobre a milícia senão a incompreensão de sua formação profissional, sua cultura e ideologia corporativa conservadora, pragmática, oportunista e imediatista. Nem sequer o funcionamento autista da Escola Anti-imperialista serviu para moderar a decisão de Kalimán  em circunstâncias que requeriam um mínimo de fidelidade estatal.
O Alto Comando jogou sua carta mais crítica apoiado em conversas prévias com Luis Fernando Camacho e servidores públicos da embaixada dos EEUU. Não há que esquecer que Kalimán foi agregado militar em Washington durante um par de anos e que uma parte de sua família permanecia nos EEUU.
Atualmente, o pessoal militar que ocupa a corrente de comandos médios se encontra no dilema de sair às ruas para seguir reprimindo as pessoas  ou se manter em seus quartéis devido às funestas consequências derivadas de sua intervenção de rua. Mas a dúvida mais forte surge da responsabilidade militar ou policial que uma vez retorne acalme o país. Muitos dos oficiais consideram que a Polícia jogará sobre os ombros das FFAA toda a responsabilidade dos mortos e feridos já que só eles usam armas de grosso calibre. O cálculo pós-conflito está começando a minar a confiança das bases em seus comandos  que consideram irresponsáveis e inoportunos.
A valoração sobre o gerenciamento de Evo Morales percorre os corredores dos quartéis. Sustentam que Evo os manteve fora de todo conflito social durante 13 anos, situação que permitiu que se incrementasse sua legitimidade institucional ante a opinião pública  frente ao descrédito da Polícia por seus evidentes atos de corrupção e indisciplina. Os oficiais admitem que seu nível salarial e sua qualidade de vida mudou substantivamente com o “processo de mudança” ao mesmo tempo que sua incursão em tarefas sociais permitiu serem considerados pelo governo como “soldados da pátria”. O pagamento do bônus “Juancito Pinto” ou de  “ Dignidade” ou seu papel no gerenciamento dos desastres naturais encomendada às FFAA permitiu uma aproximação sensível à sociedade. Além do anterior a valoração a respeito do incremento do orçamento de defesa, compra de ativos e melhoria da qualidade de vida do soldado faz parte de sua memória imediata.
No entanto hoje, e em menos de uma semana, um regime de fato, comandado por um grupo político radical e dirigentes religiosos fanáticos está conduzindo as FFAA a enfrentar o desprezo maiúsculo da sociedade e a condenação internacional cujos efeitos dificilmente serão superados nas próximas décadas.
Ao grito coletivo de militares assassinos nas ruas os comandos médios temem sofrer consequências como as seguintes: 1) deserção de soldados no meio do conflito, o que significa uma derrota moral sem precedentes, 2) Perda de poder em espaços que Evo Morales tinha conseguido construir para garantir sua fidelidade como é o caso da Segurança Presidencial (USDE), acesso a cargos públicos de alto nível (gerentes de empresas estatais) e inclusive a cargos diplomáticos, 3) Desprestigio institucional que derivaria na diminuição dramática de conscritos para o serviço militar obrigatório que na realidade é a que justifica sua existência institucional, 4) Repúdio popular permanente nas ruas, 5) Processos penais.

O mal-estar militar  frente aos acontecimentos e o elevado número de vítimas fatais produto da repressão está conduzindo ao questionamento de seus altos comandos e a um nível de desconfiança interna sem precedentes. Em um radiograma enviado às unidades militares da 8ª  Divisão do Exército desde o Comando em Chefe das FFAA de 14 de novembro do 2019 dispõe-se que o corpo de oficiais “vigie a conduta dos cadetes, alunos e soldados originários da região do Chapare dentro de todas as atividades que se desenvolvam nas unidades”. Disposição desta natureza só expressa um temor quase visceral sobre seus próprios soldados ratificando uma vez mais sua condição de força civilizatória e de ocupação colonial.
Este radiograma expressa o medo atroz do mundo indígena mas por outro lado,  o desprezo e a desconfiança que lhe gera sua presença nas FFAA. Uma verdadeira aberração cultural e corporativa após mais de 35 anos de democracia e 13 anos de uma aparente inclusão indígena nas FFAA. Este é o melhor exemplo da falência da suposta democratização militar e da convivência plurinacional e intercultural no mundo uniformizado.
Muitos oficiais sensíveis ao conflito histórico com a Polícia questionam a decisão desacertada e inoportuna de Kaliman  porque teria “salvado” a Polícia em um momento chave de sua crise operativa. Queima da whipala por efetivos da Polícia e o retiro desse símbolo de seu uniforme produziu um profundo mal-estar social que motivou ataques contra suas instalações  obrigando-as  a clamar apoio militar para serem salvos da ira popular. O agravo contra a bandeira reconhecida constitucionalmente produziu uma avaria entre Polícia e população rural e indígena.
A verdade é que o ódio proverbial entre militares e polícias não deixa de fluir no meio de um golpe grotesco que se sustenta no uso irracional da força e na conduta racista do governo que tem muita semelhança  com as velhas ditaduras militares guiadas por consignas ultramontanas estrangeiras.
O golpe de Estado contra o processo democrático liderado por Evo Morales tem o selo inconfundível das FFAA como ator protagônico mesmo que tenha sido a Polícia Nacional quem encabeçou o golpe desde a cidade de Cochabamba  na sexta-feira 8 de novembro.  Ao que parece, o domingo 10 de novembro do 2019 passará à história como um desses dias tragicômicos em  que um general medíocre e oportunista como Kalimán, com um Estado Maior pusilânime e envilecido, decidiram resignar-se a servir os interesses de uma Polícia eticamente decomposta, moralmente destruída e pateticamente circense que usou a bíblia como escudo religioso para legitimar seu sobrevivência.
Alguns setores das FFAA consideravam que o assédio popular contra a Polícia constituía o melhor momento para saldar contas pelos fatos ocorridos em fevereiro de 2003.  Naquela ocasião polícias franco-atiradores, treinados pelos EEUU, assassinaram covardemente  vários soldados do Regimento Escolta Presidencial quando uma multidão pretendia ingressar no Palácio de Governo em reação a uma medida econômica antipopular. Segundo muitos oficiais, Kalimán converteu-se em um herói proverbial das vergonhosas jornadas golpistas policiais, um fato jamais imaginado pelas FFAA.
Triste papel político o dos militares que tiveram que lhe salvar a vida a seu histórico inimigo acérrimo quando este estava ao limite de seu colapso repressivo. O Comandante Departamental da Polícia de La Paz implorava com lágrimas nos olhos ajuda às FFAA para sustentar o assédio dos movimentos sociais que reivindicavam a destituição da presidenta autoproclamada.
O apoio militar a uma polícia enfraquecida em um palco de disputa política foi um episódio excepcional. Em 1952 o Exército tinha sido derrotado pelo movimento operário que deu lugar a que a Polícia se montasse na espuma revolucionária para se vingar do mau trato que os militares outorgavam aos carabineiros da época.
Normalmente a Polícia Nacional alinhava-se aos golpes militares em condição de furgão de fila e com o rabo entre as pernas em tentar conseguir algum banquete burocrático. Em 10 de novembro ocorreu tudo ao contrário.



A Polícia por dentro

O golpe de Estado promovido pelas forças policiais desde a cidade de Cochabamba contra o governo de Evo Morales era um segredo  que foi maliciosamente ignorado pelo Ministro de Governo, habilmente dirigido pelo Comandante Geral da Polícia e eficientemente articulado pelas forças opositoras de direita que sabiam desde anos anteriores que a Polícia Nacional constituía um aliado formidável para seus planos desestabilizadores. A oposição, assessorada por agentes externos, fez trabalho ‘cirúrgico’ dentro da Polícia enquanto o governo ignorava-as ou somente apelava a elas em casos de conflito social.
Não há dúvida que na corrente geográfica de controle e comando da estrutura policial o departamento de Santa Cruz e em particular a cidade de Santa Cruz constituía o elo mais débil no que se construiu uma sorte de pacto de cumplicidade entre Ministério de Governo e forças policiais comandadas por comandos vinculados à constelação delitiva regional. Paradoxalmente, o lugar em que o delito tinha adquirido dimensões multinacionais e trans-fronteiriças era precisamente no que se construiu uma arquitetura de regulação policial do delito como no caso do cárcere de Palmasola . Do mesmo modo, esta rede de cumplicidade político-policial atingia circuitos mafiosos do narcotráfico, tráfico de armas, casas de jogo ou tráfico de terras em favor de estrangeiros cujo funcionamento era operado por polícias patrocinados politicamente.
Santa Cruz constituía um tipo de território autônomo policial que foi habilmente usado pelas forças de oposição que viram em suas margens de autonomia estatal as melhores condições para a conspiração sediciosa armada.
Durante os 13 anos do governo de Evo Morales não houve a capacidade de gerar uma política de institucionalização, modernização nem disciplinamento profissional das forças policiais. Contrariamente, os comandos policiais, favorecidos pelas rotações contínuas, beneficiaram-se de mordomias inimagináveis ao que se somou uma cultura de corrupção escandalosa, torpe ou deliberadamente desatendida.
Só ao final do mandato de Morales a Polícia foi beneficiada por um moderno sistema de controle territorial no marco da segurança cidadã denominada BOL 110 que no final das  contas só incrementava a capacidade de produção de informação para fins informais. O suporte tecnológico serviu como uma concessão graciosa e eleitoral que a Polícia  recebeu sem o entusiasmo esperado.
A relação entre governo e polícia em mais de uma década adoeceu de falhas estruturais mas a pior delas foi encomendar a um servidor público de alto nível uma responsabilidade central quando suas prioridades eram  conduzir equipes de futebol.
Morales enfrentou vários episódios de insubordinação, motins e sedição policial que foram aplacados após negociações complexas mas que nunca conseguiram se resolver de maneira estrutural. As raízes do descontentamento policial foram retroalimentadas internamente mantendo-se este clima invariável e acumulativo ao longo do tempo. Simultaneamente, as descomunais práticas de corrupção policial não receberam o tratamento adequado nem proporcional do governo.
As mordomias policiais, as práticas de corrupção bem como as amplas margens delitivas de natureza corporativa só operavam e funcionavam nos níveis de comando deixando aos subalternos  as migalhas ou “mordidas”, situação que potenciou o mal-estar policial subalterno cuja responsabilidade apontava ao governo nacional.
Por outro lado, a privilegiada relação político-militar gerou profundo ressentimento na Polícia Nacional. Os polícias viam-se como cidadãos de segunda  classe frente ao trato considerado do governo aos militares tratados como cidadãos de primeira classe . A presença do Presidente Evo Morales nos aniversários militares, os discursos solícitos valorizando o trabalho militar bem como as mordomias e prerrogativas concedidas periodicamente constituíram golpes sistemáticos ofensivos” contra uma Polícia que operava quotidianamente em condições deploráveis.
O tratamento desigual do governo nacional em favor das FFAA - construção de edifícios, campos esportivos, compra de equipe e material militar, investimentos caros em tecnologia como radares etc – alimentou um forte rancor antimilitar e antigovernamental dentro das forças policiais. A parcialidade explícita do governo de Morales em favor das FFAA foi assumida como uma humilhação persistente que foi traduzida em uma narrativa antigovernamental pelo corpo de oficiais sobre seus subalternos carentes de informação.
Além da displicente relação entre Evo Morales e a Polícia o governo nacional levou a cabo uma política de cerceamento de suas principais fontes institucionais de arrecadação. Ainda que as decisões fossem corretas, dirigidas a eliminar a corrupção, esta foram interpretadas de modo diferente pela Polícia em seu afã de preservar nichos de mordomia burocrática.
Morales foi bem mais longe a respeito do corte das prerrogativas policiais ao atribuir às FFAA a tarefa de luta contra o contrabando. As unidades policiais especializadas de luta contra o contrabando foram dissolvidas e substituídas por unidades militares. Os militares ocuparam a fronteira conseguindo romper redes de ilegalidade e controle territorial que significou uma dupla amputação: para os grupos delitivos civis que viviam do fecundo negócio do contrabando e para os polícias que viviam da proteção das redes de ilegalidade às que outorgavam proteção e impunidade.
Foi esta a Polícia sediciosa a que se enfrentou ao governo de Evo Morales e a que produziu direta ou indiretamente sua renúncia. Nunca antes a Polícia tinha conseguido derrocar um governo democrático como o fez esta corporação indisciplinada e politicamente doente.
O golpe cívico-policial não só teve um componente político senão também de natureza reivindicativa alimentada por uma memória de afronta, privações e maltrato.
Os motins policiais refletiam um ódio atroz contra o governo e explodiu em sucessivas ondas corporativas apoiadas por uma classe média que se expressou nas ruas deixando fluir seu profundo mal-estar e desprezo contra um governo em plena retirada.
O golpe policial apoiado e impulsionado nas ruas pelos protestos da classe média deixou entrever sua finalidade multifacetada .
Em primeiro lugar serviu como a melhor oportunidade para se vingar do governo pelo conjunto de maus tratos e deslocações institucionais, um tipo  de catarse corporativa inflamada em uma retórica de ódio e religiosidade que explodiu sem que ninguém previsse seu potencial efeito.
Os motins encarnavam a tarefa de recuperar suas mordomias corporativas que tinham sido cerceadas por razões políticas e cedidos às FFAA pelo governo nacional. O primeiro objetivo que conseguiu recuperar a Polícia por seus efeitos simbólicos foi a Unidade de Segurança Presidencial (USDE) das mãos do Exército. Consumada a renúncia de Evo Morales a Polícia Nacional não demorou nem um minuto em  fazer uso do dispositivo de segurança da Casa Grande do Povo obrigando o corpo de segurança presidencial a seu desalojo imediato do dito edifício. Os mais de 70 membros desta equipe especial que protegeram Morales durante mais de uma década tiveram que se dobrar quase de maneira humilhante ao Estado Maior das FFAA para receber seus novos destinos.
Do mesmo modo e por assalto, a Polícia Nacional restabeleceu o controle dos edifícios do Serviço de Identificação Pessoal (SEGIP) que tinha sido institucionalizado pelo governo de Morales para cortar pela raiz uma das maiores fontes de corrupção policial.
Retomada policial de instituições, espaços e prerrogativas fez parte das promessas do caudilho cruceño Luis Fernando Camacho para precipitar o golpe, objetivo que se cumpriu quase cirurgicamente. Em uns dos encontros realizados em Santa Cruz Camacho se comprometeu a lhes devolver todas as instituições “arrebatadas injustamente pelo governo nacional” e lhes outorgar um tratamento salarial e benefícios de aposentadoria similares aos das FFAA, um incentivo sem dúvida irrefutável.
Para além dos complexos problemas que enfrenta o novo comando policial os efetivos estão experimentando sinais de um perigoso esgotamento físico após mais de 20 dias de trabalho de rua e práticas repressivas. No entanto, a autonomia policial neste contexto de crise traduz-se em uma perigosa atuação de pequenos grupos que operam com independência do comando central. Este clima incerto, com um governo que apela ao discurso recalcitrante e um ministro de governo impulsionado por ódios atrozes contra servidores públicos de governo está promovendo a constituição de grupos policiais armados junto a bandos de paramilitares que trabalham sob uma lógica assassina e vingativa.
No meio do desacerto político tem surgido um novo fator de mal-estar policial gerado pela outorga de 34 milhões de bolivianos às FFAA para cobrir os custos da logística repressiva. Os membros da Polícia Nacional suspeitam que estes recursos serviriam para favorecer os comandos militares traduzidos em “bônus de lealdade”. Ao mesmo tempo o mal-estar agrava-se contra o governo golpista e contra as FFAA ao ter-se aprovado o DS 4078 cujo objetivo é autorizar o uso da força militar, equipes e armas, outorgando para isso a imunidade respectiva, condição da que não goza o corpo policial.
Conclusões

Está claro que militares e polícias constituem a base em que se assenta o poder do governo golpista. Também parece claro que estas bases  sustentam disputas historicamente não resolvidas  e irreconciliáveis que com o passar dos dias serão palcos de maior fratura e polarização. Para além de seu caráter provisório, um governo com senso comum deveria começar a conhecer ainda que superficialmente as profundas fraturas corporativas para evitar ser derrotados por suas consequências. Felizmente, o governo golpista só olha a sombra e não o todo e por isso seu tempo é tão breve como a explosão convulsa de ambos os corpos que começam a retorcer-se para se anular ou se destruir mutuamente.
Que o sangue chegue ao rio não depende dos golpistas, depende em todo caso das profundas feridas que voltam a ser abertas sob um comando político ignorante, arrogante, raivoso e suicida. O golpismo tem seus limites paradoxalmente no uso da força policial e militar e dependerá de como se resolve este duelo histórico nas entranhas do poder fascista.
Com uma Polícia Nacional transtornada por suas múltiplas contradições internas e umas FFAA desconcertadas pela dimensão do conflito e suas futuras responsabilidades políticas, jurídicas e institucionais os bolivianos vivem um panorama desolador.


Este texto, assinado com o pseudônimo de Ernesto Eterno, foi publicado no diário argentino ‘Página 12’, em ‘A Jornada de México’ e em ‘A Terça’ de Chile



Tradução: Comitê Carioca de Solidariedade a Cuba

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