A Bolívia vive um momento mais de descolamento social e político em sua
longa história de instabilidade e golpismo cívico-policial-militar. O que lhe
ocorre, para além da tragédia que vive este povo heroico, tem demasiados
paradoxos para deixar passar por alto. A primeira delas é a até agora incompreensível aventura destrutiva de um país que entrava no
século XXI pela rota inédita de ser ela mesma. Nunca como agora o país tinha
conseguido o que muitos outros invejam para si mesmos: crescimento econômico
sustentado, estabilidade política, unidade nacional em construção e inserção
internacional respeitável, além dos lucros sociais e a derrota secular das duas
maldições do subdesenvolvimento: extrema pobreza e analfabetismo.
O segundo paradoxo é sustentar que teve sucessão constitucional quando
na realidade o que ocorreu foi um assalto planificado ao poder. Desde a realização
de votações sucessivas no país como simulação democrática até o motim policial
o que teve foi um manejo do tabuleiro político espertamente orquestrado, desde tempo atrás, nas entranhas
do império com a cumplicidade das elites regionais racistas que se fundem em uma religiosidade quase macabra.
Jeanine Añez, autodenominada “Presidenta Constitucional”, explica uma
ascensão ilegal e ilegítima ao poder que não é mais que o corolário do desenho
golpista tecido finamente durante os últimos 3 ou 4 anos. Este arremate
fascista foi precedido por um conjunto de operações encobertas que se
despregaram sistematicamente e que os órgãos de inteligência foram incapazes de
advertir ou os encobriram.
O terceiro paradoxo é o triste papel dos meios de comunicação que quando
se lhes criticam se chamam democráticos, transparentes e independentes. Hoje,
mal são um manejo inescrupuloso e ruim de informação paga ou para dizer brevemente constituem uma maquinaria de
manipulação vergonhosa a serviço dos interesses empresariais monopólicos. Junto
à armadura da mentira sistemática, dirigida desde a diplomacia pública
norte-americana, as redes sociais cumpriram o perverso papel de filtrar
desproporcionalmente, em conteúdo como em alcance, só a suposta “maldade massista,
incluída a fraude descomunal”, encobrindo ao mesmo tempo a brutalidade e a
violência do paramilitarismo comiteísta cruceño, dos bandos armados ou do cúmplice paceño.
O quarto paradoxo tem a ver com o papel da estrutura monopólica da
violência legítima destinada a proteger o Estado e o cidadão quando na
realidade o que agora produz é violência, morte e terror estatal para sustentar
um regime ilegítimo contra a vontade popular majoritária. Nunca como
agora policiais e militares envolvidos na suposta defesa da democracia e no
controle do protesto de rua levaram tão longe suas armas repressivas comandados
desde “quartéis de guerra”.
Acobertados pelo novo regime violento, militares e polícias convivem
fraternizados pelo sangue e o luto de dezenas de bolivianos no meio de seus
ódios ancestrais com um comando político transitório que ignora seu controverso
passado.
Como entender que militares e polícias, cujo rancor recíproco ao longo
de mais de um século, que marcou a fogo suas distantes histórias
institucionais, suportem hoje a estrutura gelatinosa de um regime que só tem
produzido mortos e feridos?
Para além do surrealismo que nos envolve, polícias e militares livram no
meio do golpe de Estado uma guerra silenciosa que não parece cessar apesar da
quantidade de mortos que leva o selo de suas armas letais. O rancor que envolve
ambas instituições cuja história não cessa
de se derramar no século XXI tende a se constituir no limite real do
regime golpista.
Os sintomas do rancor começam a surgir no meio das turbulentas
manifestações sociais. Ambas frentes repressivas se acusam mutuamente de ter
disparado contra civis indefesos responsabilizando um ao outro no meio da convulsão social. Polícias acusando
militares e militares acusando polícias é uma constante que tende a se
aprofundar à medida que passam as horas.
O tragicômico papel da Promotoria Geral do Estado aparecendo em cena
tratando de acalmar o pânico corporativo com o argumento de que as mortes se produziram
por “armas longas” já é um sintoma da crise que se anuncia irreversível. Por
sua vez, para evitar mais conflito entre ambos e para distrair a atenção da
opinião pública o setor radical do governo, assessorado por agências
norte-americanas, apela ao fácil expediente de culpar estrangeiros armados como
as FARC, cubanos, colombianos e venezuelanos, pelas mortes que deixam ao longo das
forças repressivas oficiais.
A disputa perene por preservar a cercania ao poder político desde ambas
as instituições começa a produzir seus próprios cismas internos com as
consequências de uma possível débacle
do governo golpista e fascista sustentado pelo poder das baionetas, dos gases e
do chumbo.
Os militares por dentro
Após 16 anos de ter executado uma dos maiores massacres sangrentos
contra o povo do Alto que resultou em sanções penais e encarceramento para os
comandos da época, as FFAA retornaram às ruas vestidos com seu inconfundível
cáqui norte-americano com a missão de enfrentar a escalada de conflitos sociais
em todo o país. No domingo 10 de novembro, o Comandante em Chefe das FFAA,
Gral. Ejto Kalimán, aparentemente desconcertado e com voz trêmula ordenou a
saída das FFAA às ruas cujo resultado trágico até hoje supera os 20 mortos. A
metade das vítimas, majoritariamente jovens, corresponde ao “Massacre de
Sacava” do último fim de semana. Nada faz prever que esta decisão conduza a Kalimán e seus comandantes ao mesmo lugar onde
cumprem sentenças seus antecessores responsáveis do massacre sangrento do Alto
em outubro do 2003.
A decisão de Kalimán que
contrastou radicalmente com a do presidente Morales constitui uma das expressões
maiúsculas da falência educativa e pedagógica das FFAA em situações de crises
política. Evo Morales renunciou precisamente para evitar mortes desnecessárias
a contrapelo de Kalimán que dispôs a saída
dos militares com as consequências conhecidas. Quem impôs a Kalimán a ordem para a saída dos soldados à rua? O que
motivou que esta decisão seja modificada 24 horas depois, quando lhe
comprometeu a seu Capitão Geral que não moveria nenhuma unidade militar
pretextando falta de equipe, munição e agentes químicos?
A autonomia política do Gral Kalimán no momento de maior crise social e
política que precipita o golpe definitivo retrata de alguma maneira não só a
falência do comando político sobre a milícia senão a incompreensão de sua
formação profissional, sua cultura e ideologia corporativa conservadora,
pragmática, oportunista e imediatista. Nem sequer o funcionamento autista da
Escola Anti-imperialista serviu para moderar a decisão de Kalimán em circunstâncias que requeriam um mínimo de
fidelidade estatal.
O Alto Comando jogou sua carta mais crítica apoiado em conversas prévias
com Luis Fernando Camacho e servidores públicos da embaixada dos EEUU. Não há
que esquecer que Kalimán foi agregado militar em Washington durante um par de
anos e que uma parte de sua família permanecia nos EEUU.
Atualmente, o pessoal militar que ocupa a corrente de comandos médios se
encontra no dilema de sair às ruas para seguir reprimindo as pessoas ou se manter em seus quartéis devido às
funestas consequências derivadas de sua intervenção de rua. Mas a dúvida mais
forte surge da responsabilidade militar ou policial que uma vez retorne acalme o
país. Muitos dos oficiais consideram que a Polícia jogará sobre os ombros das
FFAA toda a responsabilidade dos mortos e feridos já que só eles usam armas de
grosso calibre. O cálculo pós-conflito está começando a minar a confiança das bases
em seus comandos que consideram
irresponsáveis e inoportunos.
A valoração sobre o gerenciamento de Evo Morales percorre os corredores
dos quartéis. Sustentam que Evo os manteve fora de todo conflito social durante
13 anos, situação que permitiu que se incrementasse sua legitimidade institucional
ante a opinião pública frente ao
descrédito da Polícia por seus evidentes atos de corrupção e indisciplina. Os
oficiais admitem que seu nível salarial e sua qualidade de vida mudou
substantivamente com o “processo de mudança” ao mesmo tempo que sua incursão em
tarefas sociais permitiu serem considerados pelo governo como “soldados da
pátria”. O pagamento do bônus “Juancito Pinto” ou de “ Dignidade” ou seu papel no gerenciamento
dos desastres naturais encomendada às FFAA permitiu uma aproximação sensível à
sociedade. Além do anterior a valoração a respeito do incremento do orçamento
de defesa, compra de ativos e melhoria da qualidade de vida do soldado faz
parte de sua memória imediata.
No entanto hoje, e em menos de uma semana, um regime de fato, comandado
por um grupo político radical e dirigentes religiosos fanáticos está conduzindo
as FFAA a enfrentar o desprezo maiúsculo da sociedade e a condenação
internacional cujos efeitos dificilmente serão superados nas próximas décadas.
Ao grito coletivo de militares
assassinos nas ruas os comandos médios temem sofrer consequências como as
seguintes: 1) deserção de soldados no meio do conflito, o que significa uma
derrota moral sem precedentes, 2) Perda de poder em espaços que Evo Morales
tinha conseguido construir para garantir sua fidelidade como é o caso da
Segurança Presidencial (USDE), acesso a cargos públicos de alto nível (gerentes
de empresas estatais) e inclusive a cargos diplomáticos, 3) Desprestigio
institucional que derivaria na diminuição dramática de conscritos para o serviço
militar obrigatório que na realidade é a que justifica sua existência
institucional, 4) Repúdio popular permanente nas ruas, 5) Processos penais.
O mal-estar militar frente aos
acontecimentos e o elevado número de vítimas fatais produto da repressão está
conduzindo ao questionamento de seus altos comandos e a um nível de desconfiança
interna sem precedentes. Em um radiograma enviado às unidades militares da 8ª Divisão do Exército desde o Comando em Chefe
das FFAA de 14 de novembro do 2019 dispõe-se que o corpo de oficiais “vigie a
conduta dos cadetes, alunos e soldados originários da região do Chapare dentro
de todas as atividades que se desenvolvam nas unidades”. Disposição desta
natureza só expressa um temor quase visceral sobre seus próprios soldados
ratificando uma vez mais sua condição de força civilizatória e de ocupação
colonial.
Este radiograma expressa o medo atroz do mundo indígena mas por outro
lado, o desprezo e a desconfiança que
lhe gera sua presença nas FFAA. Uma verdadeira aberração cultural e corporativa
após mais de 35 anos de democracia e 13 anos de uma aparente inclusão indígena
nas FFAA. Este é o melhor exemplo da falência da suposta democratização militar
e da convivência plurinacional e intercultural no mundo uniformizado.
Muitos oficiais sensíveis ao conflito histórico com a Polícia questionam
a decisão desacertada e inoportuna de Kaliman
porque teria “salvado” a Polícia em um momento chave de sua crise
operativa. Queima da whipala por efetivos da Polícia e o retiro desse símbolo
de seu uniforme produziu um profundo mal-estar social que motivou ataques contra
suas instalações obrigando-as a clamar apoio militar para serem salvos da
ira popular. O agravo contra a bandeira reconhecida constitucionalmente
produziu uma avaria entre Polícia e população rural e indígena.
A verdade é que o ódio proverbial entre militares e polícias não deixa
de fluir no meio de um golpe grotesco que se sustenta no uso irracional da
força e na conduta racista do governo que tem muita semelhança com as velhas ditaduras militares guiadas por
consignas ultramontanas estrangeiras.
O golpe de Estado contra o processo democrático liderado por Evo Morales
tem o selo inconfundível das FFAA como ator protagônico mesmo que tenha sido a
Polícia Nacional quem encabeçou o golpe desde a cidade de Cochabamba na sexta-feira 8 de novembro. Ao que
parece, o domingo 10 de novembro do 2019 passará à história como um desses dias
tragicômicos em que um general medíocre
e oportunista como Kalimán, com um Estado Maior pusilânime e envilecido,
decidiram resignar-se a servir os interesses de uma Polícia eticamente
decomposta, moralmente destruída e pateticamente circense que usou a bíblia
como escudo religioso para legitimar seu sobrevivência.
Alguns setores das FFAA consideravam que o assédio popular contra a
Polícia constituía o melhor momento para saldar contas pelos fatos ocorridos em
fevereiro de 2003. Naquela ocasião
polícias franco-atiradores, treinados pelos EEUU, assassinaram
covardemente vários soldados do Regimento
Escolta Presidencial quando uma multidão pretendia ingressar no Palácio de Governo
em reação a uma medida econômica antipopular. Segundo muitos oficiais, Kalimán
converteu-se em um herói proverbial das vergonhosas jornadas golpistas
policiais, um fato jamais imaginado pelas FFAA.
Triste papel político o dos militares que tiveram que lhe salvar a vida
a seu histórico inimigo acérrimo quando este estava ao limite de seu colapso
repressivo. O Comandante Departamental da Polícia de La Paz implorava com
lágrimas nos olhos ajuda às FFAA para sustentar o assédio dos movimentos
sociais que reivindicavam a destituição da presidenta autoproclamada.
O apoio militar a uma polícia enfraquecida em um palco de disputa
política foi um episódio excepcional. Em 1952 o Exército tinha sido derrotado
pelo movimento operário que deu lugar a que a Polícia se montasse na espuma
revolucionária para se vingar do mau trato que os militares outorgavam aos
carabineiros da época.
Normalmente a Polícia Nacional alinhava-se aos golpes militares em
condição de furgão de fila e com o rabo entre as pernas em tentar conseguir
algum banquete burocrático. Em 10 de novembro ocorreu tudo ao contrário.
A Polícia por dentro
O golpe de Estado promovido pelas forças policiais desde a cidade de
Cochabamba contra o governo de Evo Morales era um segredo que foi maliciosamente ignorado pelo Ministro
de Governo, habilmente dirigido pelo Comandante Geral da Polícia e
eficientemente articulado pelas forças opositoras de direita que sabiam desde
anos anteriores que a Polícia Nacional constituía um aliado formidável para
seus planos desestabilizadores. A oposição, assessorada por agentes externos,
fez trabalho ‘cirúrgico’ dentro da Polícia enquanto o governo ignorava-as ou
somente apelava a elas em casos de conflito social.
Não há dúvida que na corrente geográfica de controle e comando da
estrutura policial o departamento de Santa Cruz e em particular a cidade de
Santa Cruz constituía o elo mais débil no que se construiu uma sorte de pacto
de cumplicidade entre Ministério de Governo e forças policiais comandadas por
comandos vinculados à constelação delitiva regional. Paradoxalmente, o lugar em
que o delito tinha adquirido dimensões multinacionais e trans-fronteiriças era
precisamente no que se construiu uma arquitetura de regulação policial do
delito como no caso do cárcere de Palmasola . Do mesmo modo, esta rede de
cumplicidade político-policial atingia circuitos mafiosos do narcotráfico,
tráfico de armas, casas de jogo ou tráfico de terras em favor de estrangeiros
cujo funcionamento era operado por polícias patrocinados politicamente.
Santa Cruz constituía um tipo de território autônomo policial que foi
habilmente usado pelas forças de oposição que viram em suas margens de
autonomia estatal as melhores condições para a conspiração sediciosa armada.
Durante os 13 anos do governo de Evo Morales não houve a capacidade de
gerar uma política de institucionalização, modernização nem disciplinamento
profissional das forças policiais. Contrariamente, os comandos policiais,
favorecidos pelas rotações contínuas, beneficiaram-se de mordomias
inimagináveis ao que se somou uma cultura de corrupção escandalosa, torpe ou
deliberadamente desatendida.
Só ao final do mandato de Morales a Polícia foi beneficiada por um
moderno sistema de controle territorial no marco da segurança cidadã denominada
BOL 110 que no final das contas só
incrementava a capacidade de produção de informação para fins informais. O
suporte tecnológico serviu como uma concessão graciosa e eleitoral que a
Polícia recebeu sem o entusiasmo
esperado.
A relação entre governo e polícia em mais de uma década adoeceu de
falhas estruturais mas a pior delas foi encomendar a um servidor público de
alto nível uma responsabilidade central quando suas prioridades eram
conduzir equipes de futebol.
Morales enfrentou vários episódios de insubordinação, motins e sedição policial
que foram aplacados após negociações complexas mas que nunca conseguiram se
resolver de maneira estrutural. As raízes do descontentamento policial foram
retroalimentadas internamente mantendo-se este clima invariável e acumulativo
ao longo do tempo. Simultaneamente, as descomunais práticas de corrupção
policial não receberam o tratamento adequado nem proporcional do governo.
As mordomias policiais, as práticas de corrupção bem como as amplas
margens delitivas de natureza corporativa só operavam e funcionavam nos níveis
de comando deixando aos subalternos as
migalhas ou “mordidas”, situação que potenciou o mal-estar policial subalterno
cuja responsabilidade apontava ao governo nacional.
Por outro lado, a privilegiada relação político-militar gerou profundo
ressentimento na Polícia Nacional. Os polícias viam-se como cidadãos de segunda
classe frente ao trato considerado do
governo aos militares tratados como cidadãos de primeira classe . A presença do
Presidente Evo Morales nos aniversários militares, os discursos solícitos
valorizando o trabalho militar bem como as mordomias e prerrogativas concedidas
periodicamente constituíram golpes sistemáticos ofensivos” contra uma Polícia
que operava quotidianamente em condições deploráveis.
O tratamento desigual do governo nacional em favor das FFAA - construção
de edifícios, campos esportivos, compra de equipe e material militar,
investimentos caros em tecnologia como radares etc – alimentou um forte rancor
antimilitar e antigovernamental dentro das forças policiais. A parcialidade
explícita do governo de Morales em favor das FFAA foi assumida como uma
humilhação persistente que foi traduzida em uma narrativa antigovernamental
pelo corpo de oficiais sobre seus subalternos carentes de informação.
Além da displicente relação entre Evo Morales e a Polícia o governo
nacional levou a cabo uma política de cerceamento de suas principais fontes
institucionais de arrecadação. Ainda que as decisões fossem corretas, dirigidas
a eliminar a corrupção, esta foram interpretadas de modo diferente pela Polícia
em seu afã de preservar nichos de mordomia burocrática.
Morales foi bem mais longe a respeito do corte das prerrogativas
policiais ao atribuir às FFAA a tarefa de luta contra o contrabando. As unidades
policiais especializadas de luta contra o contrabando foram dissolvidas e
substituídas por unidades militares. Os militares ocuparam a fronteira
conseguindo romper redes de ilegalidade e controle territorial que significou
uma dupla amputação: para os grupos delitivos civis que viviam do fecundo
negócio do contrabando e para os polícias que viviam da proteção das redes de
ilegalidade às que outorgavam proteção e impunidade.
Foi esta a Polícia sediciosa a que se enfrentou ao governo de Evo Morales
e a que produziu direta ou indiretamente sua renúncia. Nunca antes a Polícia
tinha conseguido derrocar um governo democrático como o fez esta corporação
indisciplinada e politicamente doente.
O golpe cívico-policial não só teve um componente político senão também de
natureza reivindicativa alimentada por uma memória de afronta, privações e
maltrato.
Os motins policiais refletiam um ódio atroz contra o governo e explodiu
em sucessivas ondas corporativas apoiadas por uma classe média que se expressou
nas ruas deixando fluir seu profundo mal-estar e desprezo contra um governo em
plena retirada.
O golpe policial apoiado e impulsionado nas ruas pelos protestos da classe
média deixou entrever sua finalidade multifacetada .
Em primeiro lugar serviu como a melhor oportunidade para se vingar do
governo pelo conjunto de maus tratos e deslocações institucionais, um tipo de catarse corporativa inflamada em uma
retórica de ódio e religiosidade que explodiu sem que ninguém previsse seu
potencial efeito.
Os motins encarnavam a tarefa de recuperar suas mordomias corporativas
que tinham sido cerceadas por razões políticas e cedidos às FFAA pelo governo
nacional. O primeiro objetivo que conseguiu recuperar a Polícia por seus
efeitos simbólicos foi a Unidade de Segurança Presidencial (USDE) das mãos do
Exército. Consumada a renúncia de Evo Morales a Polícia Nacional não demorou nem
um minuto em fazer uso do dispositivo de
segurança da Casa Grande do Povo obrigando o corpo de segurança presidencial a
seu desalojo imediato do dito edifício. Os mais de 70 membros desta equipe
especial que protegeram Morales durante mais de uma década tiveram que se dobrar
quase de maneira humilhante ao Estado Maior das FFAA para receber seus novos
destinos.
Do mesmo modo e por assalto, a Polícia Nacional restabeleceu o controle
dos edifícios do Serviço de Identificação Pessoal (SEGIP) que tinha sido
institucionalizado pelo governo de Morales para cortar pela raiz uma das
maiores fontes de corrupção policial.
Retomada policial de instituições, espaços e prerrogativas fez parte das
promessas do caudilho cruceño Luis Fernando Camacho para precipitar o golpe,
objetivo que se cumpriu quase cirurgicamente. Em uns dos encontros realizados
em Santa Cruz Camacho se comprometeu a lhes devolver todas as instituições
“arrebatadas injustamente pelo governo nacional” e lhes outorgar um tratamento
salarial e benefícios de aposentadoria similares aos das FFAA, um incentivo sem
dúvida irrefutável.
Para além dos complexos problemas que enfrenta o novo comando policial
os efetivos estão experimentando sinais de um perigoso esgotamento físico após
mais de 20 dias de trabalho de rua e práticas repressivas. No entanto, a
autonomia policial neste contexto de crise traduz-se em uma perigosa atuação de
pequenos grupos que operam com independência do comando central. Este clima
incerto, com um governo que apela ao discurso recalcitrante e um ministro de
governo impulsionado por ódios atrozes contra servidores públicos de governo
está promovendo a constituição de grupos policiais armados junto a bandos de paramilitares
que trabalham sob uma lógica assassina e vingativa.
No meio do desacerto político tem surgido um novo fator de mal-estar
policial gerado pela outorga de 34 milhões de bolivianos às FFAA para cobrir os
custos da logística repressiva. Os membros da Polícia Nacional suspeitam que
estes recursos serviriam para favorecer os comandos militares traduzidos em “bônus
de lealdade”. Ao mesmo tempo o mal-estar agrava-se contra o governo golpista e
contra as FFAA ao ter-se aprovado o DS 4078 cujo objetivo é autorizar o uso da
força militar, equipes e armas, outorgando para isso a imunidade respectiva,
condição da que não goza o corpo policial.
Conclusões
Está claro que militares e polícias constituem a base em que se assenta
o poder do governo golpista. Também parece claro que estas bases sustentam disputas historicamente não
resolvidas e irreconciliáveis que com o
passar dos dias serão palcos de maior fratura e polarização. Para além de seu
caráter provisório, um governo com senso comum deveria começar a conhecer ainda
que superficialmente as profundas fraturas corporativas para evitar ser
derrotados por suas consequências. Felizmente, o governo golpista só olha a
sombra e não o todo e por isso seu tempo é tão breve como a explosão convulsa
de ambos os corpos que começam a retorcer-se para se anular ou se destruir
mutuamente.
Que o sangue chegue ao rio não depende dos golpistas, depende em todo
caso das profundas feridas que voltam a ser abertas sob um comando político
ignorante, arrogante, raivoso e suicida. O golpismo tem seus limites
paradoxalmente no uso da força policial e militar e dependerá de como se resolve
este duelo histórico nas entranhas do poder fascista.
Com uma Polícia Nacional transtornada por suas múltiplas contradições
internas e umas FFAA desconcertadas pela dimensão do conflito e suas futuras
responsabilidades políticas, jurídicas e institucionais os bolivianos vivem um
panorama desolador.
Este texto, assinado com o pseudônimo de Ernesto Eterno, foi publicado no
diário argentino ‘Página 12’, em ‘A Jornada de México’ e em ‘A Terça’ de Chile
Tradução: Comitê Carioca de Solidariedade a Cuba
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