11 de fev. de 2020

Javier Sotomayor: “Não me diga que Cuba é pobre”


“Em nosso país não há analfabetos nem pessoas sem cobertura médica”, diz o recordista mundial em salto em altura há  32 anos

 02/02/2020

Levamos uma hora longa a sós, conversando na cafeteria do hotel Eurostars Grand Marina, em Barcelona. Tomamos café e croissants e a camareira nos traz dois copos de água.
–Vejo que levam muito tempo falando – nos diz a mulher, dando de ombros.
Javier Sotomayor (52) dá um gole no copo enquanto toma  fôlego. Está  pensando em sua próxima resposta.
Perguntei-lhe:
–E Cuba, se livrará da pobreza?
O gigantesco Javier Sotomayor (1,94 m) é uma celebridade do desporto. Leva 27 anos alçado ao topo do mundo: contempla-nos desde seus 2,45 m, o recorde mundial em salto de altura que alcançou em 1993, em Salamanca.
–Na  realidade, sou recordista mundial há 32 anos. Fiz 2,43 m em 1988. Já desde então sempre tenho mantido o recorde – enfatiza.
No atletismo masculino ficam poucos recordes tão velhos. Estão os 8,95 m de Mike Powell em salto em distância (1991), os 46s78 de Kevin Young em 400 v (1992) e vários lançamentos (peso, disco e martelo).
Entre eles voa Sotomayor, cujo peso transcende o desporto.

"Saltei uma trave de futebol, ou uma rede 

de voleibol; quando olho me impressiona: 

é muito alta não lhe parece?”

 Em Cuba, Javier Sotomayor é uma celebridade. No Museu Nacional do Desporto de Cuba colocaram uma barra de  2,45 m. Uma homenagem similar renderam-lhe no jardim do Museu Olímpico de Lausanne : elevaram outra barra.
–E eu montei outra na porta de minha casa. Para entrar deves passar por baixo. E em nosso estádio em Havana, meus atletas põem-me essa altura uma e outra vez –diz-me.
–E você que pensa ao ver?
–É muito alto, eh? Quando saltava não me parecia tão irreal. Mas agora me impressiona. Está tão acima como uma trave de futebol. Ou como a rede do voleibol. Eu saltava uma rede de voleibol!
Em Cuba, Javier Sotomayor é uma figura esportiva, e não só. Fundou uma orquestra de salsa . De nome, pôs-lhe Salsamayor. A banda ainda existe. Agora se chama Maikel Blanco e sua Salsa Maior.
–São catorze músicos. É uma das grandes bandas em Cuba. Tem tocado em Barcelona – diz-me.
Sotomayor abriu negócios.
E com o tempo converteu-se em um embaixador do país, um técnico que toca as teclas do sistema esportivo. É o secretário geral da Federação Cubana de Atletismo.
(...)
A entrevista acontece  em uma segunda-feira, horas antes da Grande Gala do Mundo Esportivo. Javier Sotomayor está convidado à cerimônia.
Repetimos a pergunta:
–E Cuba, se livrará da pobreza?
Sotomayor deixa o copo de água sobre a mesa e responde-me:
–Não me diga que Cuba é pobre.
–...?
–Pobres não somos. Em Cuba não há analfabetos, nem crianças sem cobertura médica. Nem crianças, nem adultos. E não há gente desnutrida. No desporto, na ciência e na educação estamos entre os melhores do mundo.
–Mas economicamente...
–Economicamente sofremos limitações. Têm mudado nossos dirigentes, mas a política segue igual. Com Obama se avançou . Com Trump retrocedemos em dobro. Trump é o presidente estadunidense mais duro conosco que já houve.

"Com Trump retrocedemos em dobro. 
Trump  é o presidente estadunidense
 mais duro  conosco que já houve."

–E a economia...?
–O bloqueio limita-nos e a quem queira ter negócios conosco. Há bancos que não podem entrar. Hotéis que se retiram. Outros que fecham. Por culpa do bloqueio, alguns de nossos atletas ainda não receberam os prêmios internacionais que  ganharam.
–Quanto dói Trump?
–Nos anos de Obama  notou-se grande melhoria no turismo. Vieram muitos americanos, estávamos na  moda. Os hotéis não davam vazão e as casas particulares, também não. Eu tive um negócio sabe?
–Que fazia?
–Converti parte de minha casa em um bar. Pus-lhe Sports Bar 245.
–E conserva-o?
–Fechei-o. Não tinha tempo para ele. Um amigo promete reabri-lo.


Javier Sotomayor, no Estadio Olímpico de Barcelona, em  2017 (Jordi Lopez Dot /Federació Catalã d'Atletisme)

–E conserva muitos amigos de sua época como atleta?
–Olhe...
Mostra-me o celular.
Tem aí registrados muitos de seus rivais: Patrick Sjöberg, Carlo Traenhardt, Hollis Conway, Troy Kemp, Charles Austin, o grego Lambros Papakostas. Inclusive Mutaz Barshim, o maior da modalidade atual: o homem que lhe ronda o recorde (alcançou 2,43 m).
–Falo muito com todos. E também com os espanhóis. Quando venho à Espanha vejo a Arturo Ortiz. A Gustavo Adolfo Becker tenho-o um pouco perdido. Que foi dele?
–Não  sei. E como vê a Barshim ? Faz vc temer por seu recorde?
–Alguns recordistas dizem que sentem alívio ao perder o recorde. Dizem: ‘Se o batem, significará que a humanidade segue avançando’ –comento.
Javier Sotomayor ri.
Dá outro gole no copo.
–Para a humanidade, não sei. Para mim não é uma alegria. Embora também não me tire o sono.
“Se me tiram o recorde, talvez seja um 
avanço para a humanidade; mas para 
mim, não é nenhuma alegria"

–E você pensava que chegaria tão alto?
–Aos 16 anos já saltava 2,33 m... Com isso se pode  sonhar.
Javier Sotomayor retrocede à infância. Aparece em Limonar, junto a seu pai, contador em uma empresa de gastronomia, e junto a sua mãe, que administrava creches.
Diz que gostava de correr, mas que o seu caso, na realidade, era o salto em altura.
–Mas é uma disciplina muito mental. Parece o salto com vara. Nas corridas, o corredor sai e registra um tempo. O lançador e o saltador de distância vão  até uma marca. Em altura, às vezes podes ir até 2,40 m quando a barra estava em 2,30. E depois, igual, falhas três vezes em 2,33 m. A mim me passou algo parecido.
–Quando?
–Em 1993, nos Mundiais de Stuttgart, colocaram a barra em 2,40 m. Passei com folga. Segundo alguns estudos, levei o centro de gravidade até 2,50 m. Mas claro, isso não vale. Aquele salto foi de 2,40 m, e ponto.
Também contou que o descobriram aos 10 anos e o levaram a uma escola em Limonar. Aquela era de um sistema de Estado. As crianças com possibilidades se encaminhavam à  Escola de Iniciação Esportiva Escolar (EIDE). Treinava-se junto a outro saltador, Marinho Drake, e o vencedor dos 400 m Roberto Hernández. Foram atletas importantes.
–Tão criança, tão longe de casa...
–Se gostas, não te importas com o sacrifício. É o que vejo agora em Jaxier, o terceiro de meus cinco filhos. Tem doze anos. Mas atingirá os 2 m muito cedo. Seguirá depois? Vai depender de sua  vontade.

Tradução: Comitê Carioca e Solidariedade a Cuba

2 comentários:

  1. Legal!
    Gostei muito.
    Cuba não é pobre. Pobre é quem só pensa em dinheiro.

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  2. Que coisa mais linda!!! Eu chorei largado duas vezes em minha vida!!! Quando estive na Itália (Roma e Veneza), em particular e ver tudo o que foi construído com a exploração e trabalho escravo de outros povos.

    E claro, em Cuba, 2011: ver um povo com tanta dificuldade material; mas ao mesmo tempo, com uma dignidade que me arrepia até hoje.

    Ano passado estive na África do Sul, Zimbabwe, Botswana e Zâmbia por mais tempo... mesma emoção: que povo digno; contudo, sempre sofrendo e lidando com os interesses que vem do norte, principalmente...

    Abraço fraterno e obrigado pela matéria desse incrível ser humano: JAVIER SOTOMAYOR!!! ... VENCEREMOS!!! NUESTRO NORTE ÉS EL SUR!!!

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