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Raúl Capote: "Estamos enfrentando um fascismo que, como sua própria natureza sempre indicou, não tem escrúpulo algum" (Imagem: Gerada por IA) |
Em entrevista, o ex-infiltrado na CIA fala sobre
as faces do novo imperialismo sob Trump e explica que agora as corporações
podem fazer guerra economizando milhões de dólares
No último mês de março, a Universidade de
Havana celebrou o 20º aniversário da Telesur, o canal de notícias multiestatal
criado por Fidel Castro e Hugo Chávez, em julho de 2005, no marco da ALBA
(Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América), com o objetivo de
enfrentar o “latifúndio midiático” na América Latina. O canal é hoje
representado por uma ampla delegação de jornalistas e operadores, liderada por
sua diretora, Patricia Villegas. Foram instalados estandes dedicados à
Palestina e um grande palco para concertos e espetáculos culturais, pronto para
receber a noite de encerramento do 4º Colóquio Internacional Pátria, com o lema
“Somos povos tecendo redes”.
Três dias de seminários, encontros,
conferências e debates animados por prestigiados convidados nacionais e
internacionais (mais de 400, provenientes de 47 países): jornalistas,
intelectuais, editores e comunidades organizadas no campo da comunicação alternativa.
Foi uma ocasião também para celebrar o 133º aniversário da criação do Patria, o
jornal fundado por José Martí, que concebia a pátria como “humanidade”. Um
conceito aplicado hoje contra as “pequenas pátrias” xenófobas, os fechamentos e
as fronteiras impostas pelo “tecnofeudalismo” de Donald Trump.
Havana não parece ter sido afetada pela enésima
rodada de apagões que acaba de terminar, e que não abalaram o bom humor dos
cubanos: “Quando há sol, aproveitamos a praia; quando não há, aproveitamos para
ficar em casa e fazer amor”, nos conta um trabalhador que limpa o jardim. No
meio de um pequeno grupo de jovens com piercings e tranças, encontramos Raúl
Capote Fernández, jornalista do diário Granma, analista político e ex-agente da
segurança do Estado de Cuba. O resultado deste diálogo você confere a seguir.
Geraldina Colotti – Tendo se infiltrado na CIA
e conhecido por dentro os planos de desestabilização contra Cuba, sua
perspectiva é privilegiada para observar o que está acontecendo hoje. O que
mudou desde que você deixou de ser um agente operativo? Como vê a situação com
a chegada de Trump?
Raúl Capote – Estamos vivendo uma situação
muito complexa, realmente muito difícil, porque com o ressurgimento dos
fascismos em todas as suas variantes no mundo, com um governo de ultradireita
nos Estados Unidos, com uma visão totalmente diferente daquela a que estávamos
habituados, inclusive dentro do próprio império estadunidense, isso agrava as
coisas em muitos sentidos: porque estamos diante de uma direita organizada,
articulada, com um propósito definido, e a resposta que demos a partir da
esquerda foi uma resposta, poderíamos dizer, desarticulada.
Apesar de termos nos reunido muitas vezes,
conversado, tentado organizar um programa antifascista a nível internacional,
não tivemos a possibilidade — talvez por razões que exigiriam uma análise muito
mais profunda — de criar realmente uma frente antifascista com tudo o que as
circunstâncias exigem: porque estamos enfrentando um fascismo que, como sua
própria natureza sempre indicou, não tem escrúpulo algum.
Ou seja, vivemos em um mundo onde se pode massacrar um povo como o da Palestina, sem que absolutamente nada aconteça; onde podem ocorrer fenômenos como os da Síria, e todo mundo permanece em silêncio, simplesmente porque não está totalmente alinhado com meu pensamento ou com minhas crenças. E então há assassinatos bons, assassinatos maus; criminosos bons, criminosos maus. Claro, qualquer crime tem sempre um significado, mas “Israel” (a entidade sionista, para dizer corretamente) assassina milhares de crianças, mulheres, e o mundo se acostumou, vamos dizer com toda franqueza, a ver imagens horripilantes, sem que isso desperte nada.
Hoje temos um vizinho aqui de Cuba, ao norte,
que com uma tranquilidade tremenda diz que vai se apoderar da Groenlândia, que
supostamente é um aliado, dizem. Ou diz: “vou me apoderar do Canadá”. Diz que
vai se apoderar do canal do Panamá. Se vão fazer isso com aliados dos Estados
Unidos, que são até membros da Otan, e não acontece absolutamente nada, não há
uma resposta, imagine o que pode acontecer conosco!
E a resposta da Europa, inclusive dos partidos
de “centro-esquerda” que falam de pacifismo, é continuar armando Zelensky. O
que você acha disso?
Penso que há uma confusão tremenda, que, aliás,
tem a ver com a grande decadência que existe na Europa, não apenas do
pensamento político, mas também da liderança política da esquerda, onde há
igualmente uma falta de radicalidade.
A ultradireita europeia, o fascismo europeu,
apropriou-se do nosso discurso, o discurso da esquerda; então, as direitas se
apresentaram diante das massas como aquelas que vão solucionar os problemas
criados, amparando-se nessa nova esquerda que foi construída durante muitos
anos, que sustentou o globalismo por muito tempo, uma esquerda moldada sob
medida para os interesses desse globalismo neoliberal, e que ainda detém o
poder em alguns países da Europa, mas que responde a interesses específicos.
Assim, o monopólio da defesa do nacionalismo, da defesa dos interesses nacionais, parece ter ficado com a direita. Dessa forma, a direita aparece com um discurso positivo, dizendo que não quer guerra, falando de paz, enquanto os governos de centro e de esquerda falam em guerra, falam de uma guerra cujas consequências são incertas. Não sou, de forma alguma, simpatizante de Donald Trump, mas Trump responde ao ministro inglês, e com toda razão, pergunta: você pode vencer a Rússia? Você está falando de guerra com a Rússia — você realmente tem como vencer a Rússia? Não tem, ou seja, estão levando a Europa a uma guerra que não podem vencer, que na verdade ninguém pode vencer, e isso é o mais triste de tudo. É uma guerra que não leva absolutamente a nada e que ninguém sairá vencedor.
Estamos, então, diante de um monte de acontecimentos neste mundo, onde é evidente que está em curso uma mudança, uma mudança profunda, sobretudo no plano das hegemonias. E esse processo de aterrissagem pode seguir dois caminhos: ou será uma aterrissagem suave, consensuada, na qual todos participam dessa nova visão de mundo que muitos defendem, ou será uma aterrissagem conduzida pelo fascismo, pela ultradireita, que regerá os destinos do mundo, repartindo-o, dividindo as zonas de influência e decidindo quem manda onde, subordinando o restante do mundo — porque precisam dessa mudança, impulsionada pelo próprio desenvolvimento tecnológico.
E aí teríamos que recorrer a Marx para
compreender. O problema é que esquecemos Marx, inclusive nós que falamos de
Marx — não utilizamos as ferramentas que ele nos deixou para analisar a
história e os acontecimentos, que é o mais importante; ou seja, não usamos a
metodologia que o marxismo nos legou para compreender a história. Então, o que
está acontecendo? Para onde vamos agora? Se não temos uma resposta, se não
temos uma análise correta do que está ocorrendo, para onde iremos com um
desenvolvimento tecnológico tão avançado, que exige uma repartição do mundo e a
conquista do poder — o verdadeiro poder real deste mundo capitalista? O que
farão amanhã com os milhares de pessoas que ficarão sem trabalho, quando os
avanços tecnológicos e a inteligência artificial deixarem milhões de cidadãos
desempregados neste mundo?
A propósito da Inteligência Artificial e do
impacto que ela tem no sabotamento do sistema elétrico e dos serviços públicos.
Esse foi o tema aqui no Colóquio Pátria. Como você viu esses eventos num
momento em que Cuba se relança apesar dos apagões e de tudo? As ruas estão tão
cheias de vida como se nada tivesse acontecido.
Você sabe que Cuba, felizmente, é um bastião.
Pátria é uma ideia brilhante desde a sua criação, e tem crescido, se
transformado. Eu acredito que a ideia de realizá-lo na universidade é
extremamente interessante, não apenas pelos espaços, mas pelo que representa a
Universidade de Havana e seu próprio simbolismo, porque utilizar um jornal como
o Patria tem uma atualidade tremenda. Patria é o jornal de Martí, criado não
apenas como um órgão de um partido revolucionário para fazer uma guerra, mas
como o órgão de um partido revolucionário para fazer uma revolução — que era o
que Martí queria fazer em Cuba.
… E com um sentido muito diferente daquele
conceito de pátria xenófoba que têm os fascistas…
Exatamente, porque é o conceito de pátria de
Martí, que Martí define com clareza: pátria é humanidade, ou seja, é o conceito
de pátria que Martí defendeu. Mas, além disso, é um jornal que Martí cria em um
momento em que está surgindo o imperialismo estadunidense.
Martí está travando uma guerra contra o
imperialismo nascente — não esqueçamos nunca que o imperialismo estadunidense
se torna o que é hoje a partir da guerra hispano-cubo-americana, a guerra que
se desencadeia em Cuba pela independência, na qual os Estados Unidos intervêm e
se apropriam da vitória das tropas insurgentes cubanas. E Cuba está sendo
vítima, naquele momento, de uma duríssima guerra cultural, a primeira da
história moderna, que levou a uma campanha de descrédito dos Estados Unidos, na
qual se utilizou pela primeira vez a imprensa; já existia Pulitzer, estavam lá
os grandes meios de comunicação estadunidenses operando para influenciar a
forma de pensar das pessoas e garantir a negação de Cuba. Então estamos falando
de um jornal que enfrentou, pela primeira vez, esse desafio.
O que enfrentamos hoje é um desafio diferente,
é verdade, a época é outra, mas estamos diante do mesmo plano. Hoje estamos
diante de um império em decadência; Martí o enfrentou em seu nascimento e agora
está em decadência, por isso é tão simbólico que se crie um evento que leve o
nome do jornal de Martí. Porque estamos enfrentando também um novo mundo que
está surgindo, o imperialismo que está promovendo o fascismo, o mundo que está
promovendo a ultradireita em escala internacional.
Não é o mundo que queremos, este é o mundo
contra o qual lutamos toda a vida: é o mundo da exclusão, é o mundo do racismo,
é o mundo onde se pode agir com absoluta liberdade e, ao mesmo tempo,
assassinar, matar e invadir, sem que ocorra absolutamente nada; com um sistema
internacional criado após a Segunda Guerra Mundial e que praticamente não
existe mais, porque esse novo poder que está surgindo com tanta força está
destruindo o sistema multilateral, está destruindo o sistema que criou as
Nações Unidas. Ainda que nunca tenham sido perfeitos — todos sabemos o que isso
significou — era o único sistema que havia, o único lugar onde talvez se
pudesse expressar determinadas questões, onde houve debates muito interessantes
em certos momentos, e que servia, ao menos, para que as pessoas desabafassem,
para que se discutissem temas. Hoje isso está a caminho da destruição, e não
sabemos o que vai acontecer.
Cuba também foi laboratório dos ataques por
meio da Inteligência Artificial, para alcançar a “mudança de regime”. Em 2010,
a CIA criou o Zunzuneo, uma espécie de Twitter que operava de forma encoberta
para coletar informações sobre os usuários cubanos e, depois, utilizar essas
informações para disseminar mensagens políticas com o objetivo de gerar
desestabilização. O alvo principal era confundir os jovens. Podemos
considerá-lo um precursor da estratégia de guerra digital que vemos hoje, com o
uso de bots e trolls nas redes sociais para disseminar propaganda e
desinformação de forma anônima?
Sim, mas agora estamos enfrentando algo novo, e muita gente não entende o que está acontecendo no mundo hoje. Já ouvi alguns, inclusive da esquerda, dizerem “a revolução Trump”. Não, Trump não está fazendo uma revolução, é uma involução — e não podemos perder isso de vista, porque ele está mudando as regras do jogo, e é isso que está acontecendo agora.
A subversão da classe dominante, como dizia
Gramsci?
Sim, e agora o imperialismo não precisa mais de organizações como a Usaid, não precisa disso. Eles gastaram aí 68 bilhões de euros. Para que vão usá-la? Já têm uma enorme experiência utilizando as empresas digitais. Um exemplo é a indústria do entretenimento estadunidense — em grande parte, a guerra cultural que eles impuseram ao mundo. Eles venceram a guerra cultural no mundo e mantêm a hegemonia cultural no mundo, usando sua imensa indústria do entretenimento, sua poderosa indústria cultural. Então, para que você vai querer ONGs? Para que utilizar esse tipo de coisa? Se hoje você pode contar com uma indústria que representa o que são hoje as grandes empresas tecnológicas. Por que Trump apareceu cercado por todos os grandes donos das plataformas digitais? Porque a guerra vem por aí. Ele não precisa mais dessas coisas antigas — isso é dinheiro desperdiçado.
Hoje, serão essas empresas que vão comandar,
como fez Hollywood em seu tempo, como fez toda a indústria do entretenimento em
seu tempo. Hoje você tem a internet, tem a inteligência artificial; hoje você
pode promover determinado influencer nas redes sociais por meio da
digitalização da empresa, conduzindo os conteúdos, premiando os conteúdos que
você quer que sejam vistos e condenando ao absoluto esquecimento aqueles que
você não quer que apareçam nas redes sociais. A ditadura do algoritmo.
Esse é o imenso poder — e esse imenso poder que
o capitalismo jamais teve está agora nas mãos dessas grandes empresas. Elas têm
a capacidade de fazer essa guerra economizando milhões de dólares. Em todos os
sentidos.
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Raúl Capote |
https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/raul-capote-ex-agente-cubano-big-techs-vao-substituir-hollywood-na-guerra-cultural-dos-eua/
Gostei muito da entrevista que traz, em seu bojo ,verdades que gostaríamos de não estar vivendo. A luta, sempre, tem q continuar.
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