4 de ago. de 2021

A CONTRARREVOLUÇÃO CULTURAL CUBANA : os rappers e artistas sustentados pelo governo dos EUA ganham fama como “catalisadores dos distúrbios atuais”.


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MAX BLUMENTHAL

                         

O Movimento de San Isidro, que se apresenta como um coletivo popular de artistas que lutam pela liberdade de expressão, converteu-se em uma arma chave no assalto do governo estadunidense à revolução cubana.

“Meu povo necessita da Europa, meu povo necessita que a Europa aponte o ofensor”, proclamou Yotuel, um rapper cubano que vive na Espanha, em um ato do Parlamento da UE convocado por legisladores de direita, antes de ceder o microfone ao golpista venezuelano Juan Guaidó. Dias depois, Yotuel manteve uma chamada por Zoom com funcionários do Departamento de Estado, para falar de “Patria y Vida”, o hino rap anticomunista de sua autoria.

Enquanto assentava o pó de um dia de protestos nas cidades cubanas, o Wall Street Journal qualificou “Patria y Vida” como o “grito de guerra comum” dos opositores ao governo de Cuba, e a Rolling Stone qualificou-o como “o hino dos protestos em Cuba”.

Além de Yotuel, os dois rappers que colaboraram na canção formam parte de um conjunto de artistas, músicos e escritores chamado Movimento San Isidro. Os meios de comunicação estadunidenses atribuíram a esse coletivo o mérito de “ser o catalisador dos atuais distúrbios”.

Ao longo dos últimos três anos, à medida que as condições econômicas pioravam, sob a escalada da guerra econômica dos Estados Unidos, e enquanto o acesso à Internet se ampliava, como resultado dos esforços da Administração Obama por normalizar as relações com Cuba, o Movimento San Isidro chamou a um conflito aberto com o Estado.

Com atuações provocadoras, nas quais suas figuras mais destacadas desfilaram por Habana Vieja ondeando bandeiras estadunidenses e com flagrantes demonstrações de desprezo pelos símbolos nacionais cubanos, San Isidro entrou em conflito com as autoridades, provocando frequentes detenções de seus membros e campanhas internacionais para libertá-los.

Ao estabelecer-se em una zona majoritariamente afro-cubana de Habana Vieja e trabalhar através de meios como o hip-hop, San Isidro também manobrou para apossar-se da imagem racialmente progressista que o governo cubano de esquerda ganhou com sua histórica campanha militar contra a África do Sul do apartheid e o asilo que ofereceu aos dissidentes negros estadunidenses. Neste caso, o Movimento de San Isidro parece seguir um modelo articulado pelo grupo de pressão estadunidense para a mudança de regime.

Durante a última década, o governo dos Estados Unidos gastou milhões de dólares para cultivar rappers, músicos de rock, artistas e jornalistas cubanos antigovernamentais, numa tentativa explícita de converter em uma arma a “juventude dessocializada e marginalizada.” A estratégia implementada pelos Estados Unidos em Cuba é uma versão na vida real das fantasias que os democratas anti-Trump alimentavam, quando se preocupavam com que a Rússia estivesse patrocinando encobertamente os movimentos Black Lives Matter e Antifa, para semear o caos na sociedade norte-americana.

 

O golpista venezuelano Juan Guaidó, apoiado pelos EUA, apareceu junto de Yotuel no Parlamento da UE, para celebrar a estreia de “Patria y Vida”.

Como revelará esta investigação, os principais membros do Movimento San Isidro receberam financiamento de organizações para a mudança de regime, como a Fundação Nacional para a Democracia [NED] e a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional [USAID], ao mesmo tempo em que se reuniram com funcionários do Departamento de Estado, com pessoal da embaixada dos Estados Unidos em Havana, com parlamentares europeus de direita e com golpistas latino-americanos, desde o venezuelano Guaidó, até o secretário geral da OEA, Luis Almagro.

San Isidro também recebeu o apoio de uma rede de think tanks fundamentalistas do livre mercado, que não escondem seu plano de transformar Cuba em uma colônia para as corporações multinacionais. Dias depois de estalarem os protestos em Cuba, a direção de San Isidro aceitou um prêmio da Fundação Memorial das Vítimas do Comunismo, um think tank republicano de direita de Washington que inclui os soldados alemães nazistas em sua lista de mortes históricas em mãos do comunismo.

Por trás de sua marca como intelectuais cosmopolitas, rappers renegados e artistas de vanguarda, San Isidro abraçou abertamente a política extremista do lobby cubano de Miami. De fato, seus membros mais proeminentes expressaram um efusivo apoio a Donald Trump, respaldaram as sanções estadunidenses e clamaram por uma invasão militar a Cuba.

Não obstante, o coletivo cultural fez incursões nos círculos progressistas da intelectualidade norte-americana, trabalhando para debilitar os tradicionais laços de solidariedade entre a revolução cubana e a esquerda estadunidense. Como veremos, a ascensão do Movimento San Isidro é o último capítulo do livro emergente de jogadas do imperialismo interseccional.

As cenas de um carro de polícia virado no bairro de 10 de Octubre, em Havana, as turbas lançando coquetéis molotov nos agentes da polícia e o saqueio dos centros comerciais, neste 11 de julho, suscitaram o ressentimento de uma classe de cidadãos que caiu nas gretas da assediada economia especial de Cuba.

Após anos de aprofundamento das privações econômicas, os cubanos sofreram apagões e racionamento de alimentos, provocados pela intensificação do bloqueio econômico de 60 anos dos Estados Unidos a Cuba, realizada pelo ex-presidente Donald Trump. Um repentino colapso do turismo, devido à pandemia de Covid-19, junto com a eliminação, pelo governo, do sistema de dupla moeda de Cuba, exacerbou o caos econômico.

Cristina Escobar, jornalista residente em Havana e uma das personalidades informativas mais seguidas no canal estatal cubano, descreveu a The Grayzone as fileiras do protesto como o subproduto de uma marginalização prolongada.

“Há um grupo de pessoas em centros urbanos como Havana que têm as seguintes características”, explicou Escobar. “Costumam ser procedentes de zonas rurais pobres e se mudaram para a cidade em busca de melhores oportunidades; em geral, não são brancos, com todos as variações existentes, e vivem à margem, recebendo qualquer prestação estatal que estiver disponível. Costumam trabalhar na economia informal, sentem-se abandonados e não se implicam em ações patrióticas, porque são vítimas do período especial de pobreza”.

Ainda que a rede de segurança social de Cuba tenha evitado que esse grupo demográfico caia na miséria como a das favelas e barriadas de Estados gestionados pelo FMI, como Haiti ou Honduras, Escobar afirma que “são um grupo de pessoas olvidadas, desintegradas, sem raízes na sociedade. Estão expressando a desigualdade que experimentam e, infelizmente, já não o fazem de forma pacífica”.

Os meios de comunicação corporativos estadunidenses aproveitaram as imagens dos manifestantes afro-cubanos para pintar as manifestações como uma expressão de descontentamento explicitamente racial. Em um artigo intitulado “Afro-cubanos à frente dos distúrbios [em Cuba]”, o Washington Post citou ONGs antigovernamentais e ativistas associados ao Movimento de San Isidro, denunciando Black Lives Matter, por sua declaração de solidariedade com a revolução cubana.

O Washington Post não mencionou o papel do governo dos EUA no apoio a muitas dessas mesmas ONGs e ativistas, num intento de armar a classe baixa de Cuba. À frente da estratégia de Washington, encontram-se duas frentes tradicionais da CIA: a Agência para o Desenvolvimento Internacional (USAID) e a Fundação Nacional para a Democracia (NED).

Ao longo da Guerra Fria, a USAID trabalhou junto com a CIA para liquidar os movimentos socialistas em todo o Sul Global. Mais recentemente, ajudou a pôr em marcha um falso programa de vacinação da CIA no Paquistão, para localizar Osama bin Laden, e em seu lugar acabou gerando um surto massivo de pólio. Em toda a América Latina, a USAID financiou e formou figuras da oposição de direita, incluído o pseudopresidente da Venezuela nomeado pelos Estados Unidos, Juan Guaidó.

Por seu lado, a NED foi criada sob a supervisão do ex-diretor da CIA William Casey, para proporcionar apoio aos ativistas da oposição e aos meios de comunicação, em todos os lugares em que os Estados Unidos buscaram uma mudança de regime. “Muito do que fazemos hoje foi feito de forma encoberta há 25 anos pela CIA”, disse o cofundador da NED, Allen Weinstein, ao jornalista David Ignatius, que felicitou a organização como “o ‘coroa com grana’[1] das operações abertas”.

Ao longo de sua história, a USAID e a NED trabalharam para explorar os ressentimentos dos grupos étnicos minoritários contra os governos socialistas e não alinhados. Seu apoio financeiro e logístico aos uigures contra a China, aos tártaros contra a Rússia e aos indígenas miskitos contra a Nicarágua são alguns dos muitos exemplos.

Nos últimos anos em Cuba, os especialistas de Washington em mudança de regime centraram-se nos afro-cubanos e nos jovens marginalizados, aproveitando a cultura para converter o ressentimento social em uma ação contrarrevolucionária.

 

Convertendo a “juventude dessocializada e marginalizada” em uma arma contra o socialismo cubano

 

Um artigo publicado em 2009 no Journal of Democracy, órgão oficial da National Endowment for Democracy (NED), esboçava um ambicioso plano para cultivar a classe baixa cubana do pós-guerra fria como vanguarda antigovernamental.

“Utilizar os princípios da democracia e dos direitos humanos para unir e mobilizar a essa vasta maioria despossuída frente a um regime altamente repressivo é a chave da mudança pacífica”, escreveram Carl Gershman e Orlando Gutiérrez.

Gershman e Gutiérrez são figuras influentes no mundo dos operadores de mudança evidente de regime. Diretor fundador da NED, Gershman presidiu durante quatro décadas os esforços dos Estados Unidos para desestabilizar governos, desde Manágua até Moscou. Gutiérrez, por seu lado, que é um franco defensor de uma invasão militar estadunidense a Cuba, é secretário nacional do Diretório Democrático Cubano, financiado pela USAID e pela NED.

Gershman e Gutiérrez aconselharam uma estratégia que fomentasse a “não cooperação” com as instituições revolucionárias de Cuba, entre os que eles descrevem como “jovens dessocializados e marginais: os que abandonam os estudos, os jovens sem trabalho, que constituem quase três quartos dos desempregados de Cuba, e os que se sentem atraídos pelas drogas, a delinquência e a prostituição”.

Os dois especialistas em mudança de regime assinalaram a música e os meios de comunicação online como veículos ideais para aproveitar as frustrações da juventude cubana: “A alienação dos jovens chega à corrente principal e se expressa nas letras raivosas dos músicos de rock; nas representações dos blogueiros das frustrações e da vulgaridade da vida cotidiana; na frequente evasão do trabalho agrícola, do serviço voluntário e das reuniões dos comitês de vizinhos; e na desvinculação geral da política, que é o fruto de meio século de participação coagida e propaganda política alimentada à força”, escreveram.

No ano em que se publicou o influente documento de Gershman e Gutiérrez, Washington pôs em marcha uma audaz operação encoberta baseada na estratégia que haviam esboçado.

 

“O rap é a guerra”: a USAID recruta, de forma encoberta, artistas de hip-hop cubanos, como propagandistas da mudança de regime.

 

Em 2009, a USAID pôs em marcha um programa para desencadear um movimento juvenil contra o governo de Cuba, mediante a criação e promoção de artistas locais de hip-hop.

Devido a sua longa história como fachada da CIA, a USAID subcontratou, para essa operação, a Creative Associates International, uma empresa com sede em Washington DC, com seu próprio histórico de ações encobertas.

Creative Associates encontrou seu homem chave em Rajko Bozic, um veterano do grupo Otpor!, respaldado pela CIA, que ajudou a derrubar o líder nacionalista Slobodan Milosevic e cujos membros passaram a formar um “grupo de exportação de revolução”, que plantou as sementes de várias “revoluções coloridas”.

Fazendo-se passar por promotor musical, Bozic se aproximou de um grupo de rap cubano chamado Los Aldeanos, conhecido por seu hino ferozmente antigovernamental, “Rap is War”. O agente sérvio nunca disse a Los Aldeanos que era um agente da inteligência estadunidense; ao contrário, afirmou que era um profissional de marketing e prometeu converter o líder do grupo em uma estrela internacional.

Para levar a cabo o plano, Creative Associates pôs em marcha ZunZuneo, uma plataforma de redes sociais do estilo de Twitter, que enviava milhares de mensagens automáticas para promover Los Aldeanos entre os jovens cubanos, sem que o grupo de rap soubesse.

Após um ano, quando Los Aldeanos intensificaram sua retórica, ridicularizando a polícia cubana como zangões descerebrados, durante um festival local de música indie, a inteligência cubana descobriu contratos que vinculavam Bozic com a USAID e pôs fim à operação.

A vergonha chegou a Washington, com o senador Patrick Leahy resmungando: “A USAID nunca informou o Congresso sobre isto e nunca deveria ter sido associada a algo tão incompetente e temerário”.

Danny Shaw, professor associado de Estudos Latino-americanos e do Caribe na City University de Nova York, conheceu Los Aldeanos durante várias visitas prolongadas a Cuba. Também conheceu Omni Zona Franca, um coletivo de poetas e artistas de performance de orientação rastafári com sede no bairro de Alamar, em Havana, que serviu de inspiração para o Movimento de San Isidro.

Shaw disse que a hostilidade dos artistas contra o sistema socialista de Cuba era tão intensa, que muitos deles negavam a existência do bloqueio estadunidense. “Tentei explicar-lhes minha forma de entender a guerra econômica, e me disseram: ‘Você pode ir e vir quanto quiser, não vive aqui, assim é fácil ser marxista’. E tinham razão, descontextualizava-se completamente a situação”, disse a The Grayzone.

Segundo Shaw, alguns membros da Omni Zona Franca começaram a visitar os Estados Unidos e Europa, para participar em festivais de arte e entrevistas com meios de comunicação corporativos em espanhol. “Quando saíram à luz as histórias sobre o apoio da USAID aos rappers e artistas cubanos, tudo então fez sentido para mim”, acrescentou.

Em 2014, a USAID voltou a ficar exposta, quando recorreu à Creative Associates para organizar uma série de falsas oficinas de prevenção da AIDS, que, em realidade, eram seminários de recrutamento político.

Um documento interno da Creative Associates, vazado para os meios de comunicação em 2014, referia-se às falsas oficinas sobre a AIDS como a “desculpa perfeita” para alistar os jovens em atividades de mudança de regime na ilha.

 

O presidente Barack Obama apresentou seu plano para normalizar as relações com o governo de Cuba justamente quando se expôs a última operação da USAID. Como condição para o reconhecimento diplomático, Obama insistiu em que Cuba ampliasse o acesso à Internet.

O sítio web de investigação venezuelano Misión Verdad advertiu então: “Estamos assistindo a uma atualização dos mecanismos, métodos e modos de intervenção. Toda a harmonia deste momento é totalmente ilusória. O que já se coloca sob o título de ‘normalização’ no entorno sociopolítico cubano proporciona as condições mínimas de funcionamento para facilitar a ideia de uma ‘primavera cubana’, uma revolução de proveta […]”

 

 

A expansão da Internet abre a porta à infiltração estadunidense

 

A rede de internet 3G chegou a Cuba em 2018, permitindo aos jovens cubanos ter acesso às redes sociais em seus telefones. Agora, em lugar de fazer girar a plataforma de meios sociais como ZunZuneo, a inteligência estadunidense centrou-se em desenvolver tecnologia como Psiphon, para que os cubanos pudessem entrar no Facebook e YouTube apesar dos cortes de Internet.

A NED e a USAID aproveitaram essa oportunidade para construir um potente aparato mediático antigovernamental online. A nova fornada de meios respaldados pelos Estados Unidos, como CubaNet, Cibercuba e ADN Cuba, representaram uma câmara de eco de insurreição tóxica, ridicularizando o presidente Miguel Díaz-Canel com memes insultantes pedindo que fosse processado por altos crimes, inclusive o genocídio.





Publicado por: The Grayzone, em 25-07.21.  https://thegrayzone.com/2021/07/25/cubas-cultural-counter-revolution-us-govt-rappers-artists-catalyst/

Tradução: Marcia Chouerie.



[1]     Sugar daddy, no original.





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