A cúpula das Américas por Lattuf |
Por: Marcia Choueri*
A IX reunião de
Cúpula das Américas, que deve se realizar em Los Angeles de 6 a 10 de junho,
está se transformando numa pantomima, bem à moda dos governos norte-americanos.
Com
a atitude habitual dos presidentes de lá – não importa se democratas ou
republicanos –, que tratam a América Latina como se fôssemos seu quintal, Joe
Biden resolveu que pode escolher quem vai à reunião. Acontece que, pelo menos
em teoria, essa não é uma prerrogativa do país anfitrião, mas ele prefere
ignorar as regras do jogo.
A
Cúpula das Américas é uma reunião de chefes de Estado convocada pela OEA e
deveria contar com a presença de todos os países do continente... mas não foi
assim nem mesmo quando começou.
A
primeira aconteceu em 1994, em Miami. Foram convidados todos os países
americanos, menos Cuba, claro! Muito importante: nessa reunião, os
Estados Unidos propuseram a criação da ALCA – Área de Livre Comércio das
Américas. Essa aliança não saiu do papel até hoje, graças à luta e resistência
de povos, políticos e governos populares da América Latina. A ALCA tem o
objetivo de acabar com as barreiras alfandegárias entre os países-membros, o
que provocaria a desindustrialização dos países menos desenvolvidos e assim
aumentaria mais ainda as diferenças econômicas na região. Mas é bom ficar
atento, porque eles não desistiram, volta e meia se escuta falar de novo nesse
garrote.
As
reuniões de Cúpula das Américas ocorrem mais ou menos a cada três ou quatro
anos, e Cuba só foi finalmente convidada à VII edição, que aconteceu em abril
de 2015, no Panamá. Foi a primeira vez em que participaram todos os 35 países
americanos. Isso foi fruto de exigências internacionais, pelo respeito à livre
determinação e aos direitos de cada povo decidir sobre seu sistema, e refletia
a correlação de forças daquele momento no continente. Nela, estavam presentes,
Dilma, Maduro e Raúl Castro, que se reuniu ali com Obama, naquela tentativa de
reaproximação entre Cuba e os Estados Unidos.
A
edição seguinte foi talvez a mais acidentada. Ela aconteceu em Lima, no Peru,
de 10 a 14 de abril de 2018, e tinha como tema “A governança democrática contra
a corrupção”. Soa conhecido? Não por acaso. Aconteceu justamente quando vimos a
utilização da bandeira contra a corrupção para derrubar governos e prender
políticos de esquerda no continente. A reunião em si foi um fracasso: o
presidente do país anfitrião renunciou ao cargo poucas semanas antes do evento,
sob acusações de corrupção; a Venezuela foi formalmente desconvidada, como
forma de sanção ao governo do presidente Nicolás Maduro; em seguida, o
presidente Raúl Castro anunciou que não iria ao encontro; Lenin Moreno,
presidente do Equador, viajou a Lima, mas não compareceu; e pela primeira vez nem
o presidente norte-americano compareceu: Trump mandou o vice para
representá-lo. Pelo Brasil, estava o golpista.
E
agora, o que está acontecendo, com a IX Cúpula das Américas? Desde o início,
Biden deu sinais de que os convites seriam seletivos – tipo um churrasco na
laje, só convido os “broders”. Finalmente, no dia 2 de maio, o governo
norte-americano declarou que Venezuela, Nicarágua e Cuba não seriam convidadas.
Mas desta vez a reação internacional ante a prepotência imperial não demorou. O
presidente López Obrador, do México, insistiu bastante, desde o início, em que
a reunião devia ser totalmente inclusiva, e que não iria, se não fosse assim. O
presidente da Bolívia, Luis Arce, declarou: “se persistir a exclusão das nações
irmãs, não farei parte disso”. Xiomara Castro, presidenta de Honduras, disse
que a reunião não seria uma cúpula das Américas, se não estivessem todas as
nações. Também 14 países do Caricom, a comunidade do Caribe, anunciaram em 5 de
maio que não participariam.
Outro
presidente que não pretendia participar era o do Brasil, mas por outras razões.
No caso de Jair B., o momento não é bom para ausentar-se do país, em plena
campanha de reeleição e com maus resultados nas pesquisas. Mas o governo
norte-americano mandou um emissário para convencê-lo, e já há até uma reunião
marcada dele com Biden, durante a cúpula.
Uma
das questões levantadas contra essa atitude dos EUA é que o argumento para a
exclusão desses países, de que “não são democráticos”, seria uma desculpa
hipócrita para o que, na verdade, é uma tentativa de isolar os principais
aliados da Rússia no continente.
Outra
questão importante é que o governo Biden decidiu sozinho e de forma autoritária
– oh, que surpresa! – o tema da reunião: “Construção de um futuro sustentável,
resiliente e equitativo”. Hipocrisia de novo. Um futuro sustentável para o
continente (e o mundo) depende justamente de uma mudança nos hábitos dos
grandes consumidores de combustíveis fósseis, e sabemos que os EUA são o maior
deles.
Por
outro lado, esse tom genérico esconde a intenção de discutir o tema das
migrações irregulares, e novamente se confirma o caráter hipócrita e
autoritário da convocatória, já que exclui dois países – Cuba e Venezuela –
cujos problemas migratórios são provocados em grande parte exatamente pelas
medidas coercitivas estadunidenses. É a pobreza criada pelo bloqueio dos
Estados Unidos que empurra parte da população desses países a migrar. E são as
políticas discriminatórias dos Estados Unidos – recusando vistos inclusive já
pactados – que faz que sejam migrantes ilegais.
Mas
a decisão de excluir alguns países da Cúpula das Américas, um verdadeiro
retrocesso em relação às duas edições anteriores, embora seja apontado como um
erro estratégico por muitos analistas, tem como alvo, na verdade, as eleições
legislativas norte-americanas em novembro. Biden está tentando não ficar mal
com os representantes da máfia anticubana no Congresso.
A
reação do presidente cubano Miguel Diaz-Canel às especulações de que o país poderia ser excluído
da reunião foi incisiva: ainda que Cuba seja convidada, eu não irei. Esta foi
uma resposta não só à indefinição, mas também ao absurdo de que a presença de
Cuba não seja considerada imprescindível, numa reunião que pretende propor,
segundo seus organizadores, ações que “melhorem dramaticamente a resposta à
pandemia”, “promovam uma recuperação verde e equitativa” e “atendam às causas
de raiz da migração irregular”. Quem, melhor que Cuba – que já vacinou a mais
de 90% de sua população, e com vacinas próprias – poderia falar de combate à
pandemia?
Entretanto,
no que parece ser uma política de “morde e assopra”, o governo Biden acaba de
levantar as restrições aos voos dos Estados Unidos a Cuba, o que facilita a
vida dos cubanos que vivem lá, para visitar suas famílias na Ilha. A ação não
tem resultados mais importantes em termos econômicos, já que os cidadãos
norte-americanos continuam proibidos de visitar Cuba individualmente, como
turistas. Sim, isso mesmo! O bloqueio a Cuba atinge também os cidadãos
norte-americanos.
Em
resumo, ainda faltam alguns dias para a IX Cúpula das Américas, mas já dá para
prever que não terá grandes resultados, exceto o de revelar novamente o caráter
imperialista do governo norte-americano.
*Marcia Choueri é correspondente em Havana do Comitê Carioca de Solidariedade a Cuba
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