25 de set. de 2025

“A Venezuela continua sendo o grande laboratório político do nosso tempo”: Entrevista com Ignacio Ramonet

                                   

Por Geraldina Colotti

Ignacio Ramonet, jornalista, ensaísta e analista internacional, foi editor de longa data do Le Monde Diplomatique. Em seu livro “A Era da Conspiração”, ele analisou os mecanismos do "Trumpismo", que vemos se espalhando para outras latitudes hoje, da América Latina à Europa. Discutimos a crise política na União Europeia e as tensões renovadas entre os Estados Unidos e os países socialistas da América Latina.

 

Vivemos em um momento de transformações profundas e dramáticas, que afetam todos os aspectos de um modelo — o modelo capitalista dominante — em crise sistêmica, mas com a clara intenção de forçar toda a humanidade a viver sua agonia. Da sua perspectiva — a de um analista político refinado e experiente — como o senhor interpreta essa crise?

 

Não estamos diante de uma crise pontual do capitalismo, mas sim de uma crise civilizatória. O sistema, em sua versão neoliberal e financeirizada, chegou a um ponto em que não pode mais se reproduzir sem destruir seus próprios fundamentos: o trabalho, a natureza, os laços sociais e até mesmo a ideia de comunidade política. O capital transforma o colapso em estratégia, a precariedade em norma e administra a catástrofe como se fosse um estado natural das coisas. Sua agonia é longa e violenta, e ele pretende arrastar consigo toda a humanidade. O que se anuncia não é apenas o esgotamento de um modelo econômico, mas o fim de uma racionalidade histórica: aquela que identificava progresso com acumulação infinita.

 

E que contrapesos você identifica no que muitos veem como a emergência de um mundo multicêntrico e multipolar, do qual, no entanto, não emerge uma visão prospectiva clara, como ocorreu no século passado, quando boa parte do mundo acreditava na esperança do comunismo?

 

O mundo multipolar já é um fato da vida, mas ainda não é um horizonte. Multipolaridade significa diversificação de centros de poder, enfraquecimento da hegemonia absoluta dos Estados Unidos e o surgimento de atores como China, Índia e Rússia. Mas isso não equivale à emancipação. No século XX, mesmo em meio a guerras e contradições, a esperança comunista oferecia uma narrativa de futuro, uma bússola coletiva. Hoje, o multipolarismo aparece mais como uma negociação entre potências do que como um projeto de humanidade. Dito isso, nas margens, nos movimentos sociais do Sul Global, na resistência feminista, indígena e ambientalista, outra lógica está emergindo: a de uma vida medida não pelo lucro, mas pelo cuidado. Aí reside, ainda em sua infância, uma perspectiva esperançosa.

 

Vamos falar sobre a crise na Europa, começando pela do sistema político francês, agora imerso em uma nova e provável queda do governo. Qual é a sua análise das forças em jogo e das possíveis soluções?

 

A França encarna, de forma particularmente vívida, a crise política europeia. A Quinta República, concebida para garantir a estabilidade, tornou-se um regime bloqueado, incapaz de gerar legitimidade. Macron governa com arrogância tecnocrática, mas também com um vácuo de visão: ele não fala à sociedade, mas aos mercados e a Bruxelas. Essa desconexão explica a raiva social, a fragmentação da esquerda e a ascensão da extrema direita. A Europa vivencia na França seu próprio espelho quebrado: instituições que não representam mais, pessoas que não se sentem ouvidas, sociedades que buscam soluções em protestos ou no voto de protesto. A verdadeira solução exigiria uma refundação democrática a partir de baixo, mas esse horizonte ainda precisa ser politicamente organizado.

 

A França é a força motriz do rearmamento europeu, sendo o país que executa o maior número de projetos financiados pelo Fundo Europeu de Defesa (FED). A Itália de Giorgia Meloni segue o mesmo caminho. A Alemanha está se rearmando, e os países bálticos não ficam muito atrás. Pode a União Europeia ser apenas o complexo militar-industrial, eternamente subserviente aos Estados Unidos? E que consequências isso pode ter no contexto dos conflitos atuais?

 

O rearmamento europeu é o sintoma mais evidente da subordinação do continente aos interesses estratégicos dos Estados Unidos. França, Alemanha, Itália e os países bálticos não se rearmam para defender seu próprio projeto, mas para fortalecer o complexo militar-industrial sob a tutela da OTAN. A Europa investe em armas o que nega à coesão social, à educação ou à transição ecológica. Esse desequilíbrio revela uma escolha histórica: ser um campo de confronto e não um ator de paz. Com isso, a Europa não apenas se militariza, mas também se torna irrelevante como projeto civilizacional. Ao abdicar de uma política externa autônoma, renuncia à sua capacidade de oferecer ao mundo qualquer racionalidade que não seja a da guerra.

 

A crise das democracias ocidentais está revelando dois fenômenos crescentes: a insatisfação do eleitorado (principalmente da esquerda) e a ascensão de partidos xenófobos e de extrema direita, aparentemente os menos propensos a usar "métodos fortes" na arena geopolítica. Como ocorreu esse curto-circuito e como escapamos dessa armadilha?

 

O curto-circuito das democracias ocidentais tem raízes profundas. Durante décadas, a social-democracia e grande parte da esquerda aceitaram o neoliberalismo como um marco inevitável. Naquele momento, a traição foi consumada: milhões de trabalhadores, jovens e setores populares se sentiram privados de representação real. A extrema direita se estabeleceu então como o único discurso de ruptura, oferecendo identidades fechadas, soberanias fictícias e segurança ilusória. É uma narrativa pobre e excludente, mas que se conecta com a dor social daqueles que viram seus direitos devastados. A solução não pode ser imitar essa narrativa, mas reconstruir um horizonte emancipatório: redistribuição radical da riqueza, democracia participativa, internacionalismo, justiça social e ecológica. Em outras palavras, devolver à política a capacidade de nomear o futuro.

 

Enquanto a possibilidade de uma alternativa anticapitalista, ou de uma democracia avançada (o que foi chamado de "renascimento latino-americano" após a vitória de Chávez nas eleições presidenciais venezuelanas), se esvai, a ameaça de uma nova internacional fascista, com diferentes inflexões, se avizinha. O "modelo" europeu também está sendo imposto na América Latina?

 

O ciclo progressista latino-americano, que alguns chamaram de "renascimento" após a vitória de Chávez em 1998, abriu um horizonte inesperado em meio à dominação neoliberal: a possibilidade de uma democracia avançada, popular, inclusiva, soberana e com justiça social. No entanto, esse impulso inicial rapidamente encontrou limites e resistências: sabotagem econômica, golpes brandos, guerra midiática e também as contradições internas dos próprios processos. Nesse vazio, ressurge um perigo que pensávamos ter sido banido: uma internacional fascista com múltiplas faces – religiosa, neoliberal, militarista – operando em rede e fortemente inspirada pela Europa. A América Latina, tantas vezes um laboratório de emancipação, corre o risco de se tornar também um laboratório para novas formas de autoritarismo. A batalha atual é impedir que essa racionalidade excludente se torne a norma e recuperar a audácia de imaginar nosso próprio projeto histórico.

 

Qual é a sua análise do "laboratório venezuelano" à luz dos novos ataques imperialistas à Revolução Bolivariana, mas também da perspectiva das forças transformadoras? Como esse "experimento" se insere na história do marxismo?

 

A Venezuela continua sendo o grande laboratório político do nosso tempo. Lá, eles estão tentando algo que o sistema global não pode tolerar: combinar democracia participativa, soberania nacional e redistribuição social sob um horizonte socialista. É por isso que os ataques continuam inabaláveis: bloqueios, sanções, sufocamento econômico e campanhas de deslegitimação. Mas eles também viram as formas mais criativas de resistência popular: comunas, autogestão, a ideia de poder de baixo. Na história do marxismo, a experiência bolivariana representa uma tentativa de atualização: não repetir dogmas, mas enxertar a tradição emancipatória nas realidades latino-americanas, com Bolívar, com Chávez, com os povos indígenas e com a memória insurgente do continente. É um processo inacabado e carregado de tensões, mas também é a prova de que o marxismo não está morto: ele se transforma, reencarna e busca novas sínteses.

 

Os aparatos ideológicos de controle estão cada vez mais sofisticados. A guerra de quarta e quinta geração é acompanhada pela guerra cognitiva, como vemos com o genocídio na Palestina — o mais televisionado e, ao mesmo tempo, o mais oculto —, mas também com a agressão à Venezuela. E, no entanto, vemos também que, com a chegada de Trump, o ataque aos setores populares e às visões que buscaram representá-los no último século (socialismo e comunismo) é direto e frontal. Como devemos interpretar tudo isso?

 

Vivemos em uma era em que a dominação não se exerce mais apenas por meio de armas e exércitos, mas por meio de narrativas e dispositivos de controle mental. A guerra de quarta e quinta gerações, a chamada "guerra cognitiva", consiste em moldar percepções, fabricar consensos e naturalizar injustiças. A Palestina é o caso mais brutal: um genocídio transmitido ao vivo e, ao mesmo tempo, oculto sob camadas de manipulação midiática. O mesmo se aplica à Venezuela e a todo processo que questione a ordem imperial. O trumpismo, e fenômenos semelhantes em outras latitudes, apenas expõem essa lógica: o ataque frontal a setores populares e memórias de emancipação (socialismo, comunismo, lutas operárias, feministas ou anticoloniais). O que se busca é erradicar a própria ideia de alternativa. Nossa tarefa é justamente a oposta: preservar a memória, sustentar a resistência e manter viva a imaginação política de um outro mundo possível.

 

Cem anos após o nascimento de Fanon, Malcolm X e Lumumba, será que o Sul global, a Palestina e a África em particular (estou pensando especialmente no Sahel), ainda precisam da sua mensagem? O socialismo bolivariano está certo em apostar na possibilidade de construir um novo homem e uma nova mulher hoje sem destruir o que o impede? Ou precisamos voltar ao facão?

 

Um século após o nascimento de Franz Fanon, Malcolm X e Lumumba, sua mensagem permanece essencial. Fanon nos ensinou que a colonização ocupa não apenas territórios, mas também consciências, e que a libertação deve ser tanto material quanto psicológica. Malcolm encarnou a dignidade radical diante do racismo estrutural. Lumumba simbolizou a soberania africana em um mundo dividido em blocos. Hoje, na Palestina, na África e no Sul global, essas lições são vitais: sem emancipação cultural, não há emancipação política. O socialismo bolivariano, ao falar do "novo homem e da nova mulher", retoma essa tradição: a de transformar o ser humano no próprio processo de luta, não depois. Não se trata de "retornar ao facão" como pura violência, mas de reconhecer que nenhum projeto emancipatório pode florescer sem desmantelar os dispositivos de opressão que o sufocam. O desafio permanece o mesmo: libertar o ser humano em sua totalidade.

                                                                                                                  

https://cubaenresumen.org/2025/09/07/venezuela-sigue-siendo-el-gran-laboratorio-politico-de-nuestra-epoca-entrevista-a-ignacio-ramonet/

Trad/edição Coitê Carioca de Solidariedade a Cuba e às Causas Justas 




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