26 de set. de 2025

Um encontro no Harlem: Malcolm X, Fidel Castro e a luta pela Palestina

                                   

Por Manolo de los Santos

  Em setembro de 1960, no coração da América Negra, o Hotel Theresa, no Harlem, se tornou o palco de um dos encontros mais monumentais do mundo.

  Quando Malcolm X e Fidel Castro se encontraram lá, 65 anos atrás, o próprio Harlem se tornou um ponto de encontro de fervor revolucionário. O encontro deixaria uma marca indelével não apenas na cidade de Nova York, mas em todo o mundo, tornando-se um momento decisivo que ajudou a moldar a consciência de gerações de combatentes da liberdade e acelerou o ritmo da luta pela libertação nos Estados Unidos e em todo o mundo.

  O encontro entre Fidel e Malcolm X no Hotel Theresa não foi uma mera oportunidade para fotos, mas um símbolo poderoso de uma era de revolução e lutas de libertação nacional cristalizadas em um abraço entre dois jovens revolucionários que enfrentaram a ira do império americano e enviaram uma mensagem poderosa contra a hegemonia americana e a opressão racial.

   Este evento, fruto de circunstâncias e desafios, permanece profundamente relevante hoje, especialmente no contexto dos debates globais sobre autodeterminação e da luta contínua pela libertação palestina. Assim como a Revolução Cubana de 1960, que personificou os sonhos e aspirações dos povos oprimidos em todo o mundo, a causa palestina e o povo de Gaza servem hoje como uma bússola para aqueles que buscam mudar o mundo. O inquebrantável espírito de resistência de Gaza tornou-se um símbolo poderoso para uma nova geração de ativistas que lutam pela libertação em todo o mundo.

 

            A hostilidade dos Estados Unidos e a recepção do Harlem


    A visita de Fidel Castro a Nova York para a 15ª sessão da Assembleia Geral da ONU foi recebida com hostilidade pela elite americana. Quando ele e a delegação cubana foram inicialmente hospedados no Hotel Shelburne, no centro da cidade, a gerência exigiu um alto depósito em dinheiro de US$ 20.000 por "danos", e o Departamento de Estado dos EUA restringiu seus movimentos. Este foi um claro ataque político, parte de uma campanha mais ampla dos EUA para isolar a incipiente Revolução Cubana, à medida que a sabotagem da CIA e os ataques terroristas na ilha começavam a ganhar força.

     Foi nesse momento de tensão diplomática que um grupo de líderes negros, incluindo Malcolm X, interveio. Convidaram Fidel e a delegação cubana para o Hotel Theresa, um ponto central da vida cultural e política afro-americana no Harlem. Fidel aceitou, transformando uma afronta diplomática em uma poderosa declaração política contra a tentativa do governo Eisenhower de silenciá-lo. Ao se mudar para o Harlem, Fidel causaria uma dor de cabeça para Washington ao destacar intencionalmente a hipocrisia de uma nação que se proclamava defensora da democracia e da liberdade no exterior, enquanto seus cidadãos negros enfrentavam segregação e opressão sistêmicas em casa.

     A atmosfera no Harlem era eletrizante. Milhares de pessoas, desafiando a chuva, reuniram-se em frente ao Hotel Theresa para aplaudir o líder revolucionário, demonstrando o apoio popular entre os afro-americanos à luta de Cuba contra o imperialismo americano.

    Como o próprio Malcolm X escreveu mais tarde em sua autobiografia, Fidel “deu um golpe psicológico contra o Departamento de Estado dos EUA quando o confinou em Manhattan, sem imaginar que ele permaneceria no Harlem e causaria tal impressão nos negros”. Rosemari Mealy, em sua obra Fidel e Malcolm X: Memórias de um Encontro, destaca o profundo significado dessa medida.

     Ele observa que o encontro simbolizou "o respeito que os dois homens tinham um pelo outro" e sua luta compartilhada pela autodeterminação e libertação nacional.  Para os milhares de pessoas que se reuniram em frente ao hotel, "começou a tomar forma a ideia de que Castro viria para cá para se hospedar porque havia descoberto, como a maioria dos negros, o tratamento repugnante dispensado aos desfavorecidos no centro da cidade". Fidel era visto como um revolucionário que havia "mandado a América branca para o inferno", como disse um jornal negro contemporâneo. Esse sentimento poderoso repercutiu profundamente na comunidade.

 

                     Encontro anti-imperialista no coração do Harlem

                                             

O lendário Malcolm X se encontra com Fidel Castro no Hotel Theresa, no Harlem. Foto: Arquivo Cubadebate.

     O encontro no Hotel Theresa foi um momento crucial na história do internacionalismo e da solidariedade anti-imperialista. Demonstrou uma clara compreensão de que a luta contra a opressão racial e pelos direitos humanos nos Estados Unidos estava inextricavelmente ligada à luta contra o colonialismo e o imperialismo no exterior. Este é um tema central explorado por acadêmicas como Rosemari Mealy em sua obra, que compila relatos e reflexões em primeira mão, destacando como o encontro simbolizou uma era de descolonização e lutas por direitos humanos entre povos negros e do Terceiro Mundo em todo o mundo.  Foi uma forte rejeição à narrativa da Guerra Fria, que buscava retratar esses movimentos como isolados e ilegítimos.

      O encontro expôs a hipocrisia das pretensões dos Estados Unidos de serem um farol de liberdade, enquanto seus próprios cidadãos negros enfrentavam segregação e violência sistêmicas, não apenas no Sul dos Estados Unidos sob as leis de Jim Crow, mas também em centros urbanos do Norte. A decisão de Fidel de se mudar para o Harlem e seus encontros subsequentes com líderes mundiais como Jawaharlal Nehru, da Índia, e Gamal Abdel Nasser, do Egito, a partir de sua "nova sede", o transformaram de uma figura hemisférica em uma figura global. Como escreve Simon Hall em “ Dez Dias no Harlem ", as ações de Fidel destacaram que "a mancha da segregação permanecia viva no Norte urbano" e colocaram as políticas de anti-imperialismo e igualdade racial no centro da Guerra Fria. A imagem do Hotel Theresa, um estabelecimento de propriedade de negros que serviu como um centro para líderes mundiais que desafiavam o poder dos Estados Unidos, foi uma manifestação tangível da ascensão do projeto de soberania e independência do Terceiro Mundo em sua infância.

    Em 24 de setembro, a atmosfera no quarto de Fidel no Hotel Theresa era eletrizante, um pequeno cômodo repleto da energia de uma jovem revolução. Estava lotado de guerrilheiros cubanos, jovens que haviam descido das montanhas da Sierra Maestra menos de dois anos antes. Aos 34 anos, o próprio Fidel era um turbilhão de movimento; sua famosa barba e seu uniforme verde-oliva irradiavam uma energia inquieta. O quarto, abarrotado de rascunhos de seu próximo discurso na ONU e telegramas de notícias dispersos, servia como um quartel-general improvisado. À sua frente, sentava-se Malcolm X, de 35 anos, que, em um terno elegante e com uma presença igualmente imponente, personificava o movimento de libertação negra cada vez mais militante nos Estados Unidos.  O encontro foi uma troca profunda, ainda que breve, entre dois homens que reconheceram um no outro o reflexo de suas próprias lutas, uma luta compartilhada pelo que Fidel chamaria dois dias depois, em seu histórico discurso de quatro horas perante a ONU, de "plena dignidade humana" de todos os povos oprimidos.  Apenas alguns jornalistas negros foram autorizados a entrar, diante dos quais Fidel, falando em inglês, expressou sua admiração pela resiliência dos afro-americanos. "Admiro isso", disse ele. "Seu povo vive aqui e enfrenta essa propaganda o tempo todo, e ainda assim eles entendem. Isso é muito interessante." A resposta de Malcolm X foi sucinta e contundente: "Somos 20 milhões, e sempre entendemos." Ao sair do hotel, diante de uma multidão de jornalistas hostis que lhe perguntavam sobre sua simpatia pelos cubanos, Malcolm X respondeu desafiadoramente: "Por favor, não nos digam quem devem ser nossos amigos e quem devem ser nossos inimigos."

    Embora Fidel e Malcolm X nunca mais se encontrassem pessoalmente, suas vidas se entrelaçaram por meio de um compromisso compartilhado com o internacionalismo. Poucos anos após seu encontro histórico, Malcolm X viajaria para Gaza, onde se encontraria com a recém-formada Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e escreveria seu poderoso ensaio "A Lógica Sionista", no qual descreveria o sionismo como "uma nova forma de colonialismo". Essa solidariedade espelhava a da Revolução Cubana; delegações cubanas anteriores, incluindo Raúl Castro e Che Guevara, também haviam visitado Gaza, e Cuba se tornaria um dos primeiros países a reconhecer tanto a OLP quanto o Estado Palestino.

 

                   Do Harlem à Palestina


      Os ecos da reunião de 1960 ressoam fortemente na próxima 80ª sessão de alto nível da Assembleia Geral das Nações Unidas. Os princípios fundamentais que definiram o encontro entre Fidel e Malcolm X — autodeterminação, anti-imperialismo e a plena dignidade dos povos oprimidos — são hoje objeto de intensa controvérsia. Isso é mais evidente no genocídio ocorrido na Palestina, onde, por quase dois anos, Israel, com o apoio inabalável dos Estados Unidos, busca erradicar o povo palestino em Gaza por meio de uma campanha brutal de guerra sem fim, cerco e fome provocada pelo homem.

     Hoje, a luta palestina reflete o bloqueio opressivo e o cerco genocida que Cuba sofreu por décadas.  Enquanto a luta de Cuba contra o bloqueio e as sanções dos EUA tem sido uma guerra prolongada de atrito, marcada por um desaparecimento calculado do ciclo de notícias, a experiência palestina tem sido um massacre constante e visceral. A mídia americana e ocidental deslegitima consistentemente a realidade de ambos os povos, mas difere em sua visibilidade imediata e brutal. A solidariedade que Malcolm X demonstrou para com Cuba, vendo em Fidel uma alma gêmea na luta contra o poderoso império americano, é o mesmo espírito que anima os movimentos pró-palestinos hoje. Assim como Fidel e Malcolm X reconheceram sua causa comum, uma nova geração de ativistas ao redor do mundo vincula cada vez mais a luta palestina aos seus próprios movimentos anticolonialistas, antirracistas e de libertação. Em todos os continentes, a bandeira palestina e o keffiyeh tornaram-se inseparáveis ​​da luta pela autodeterminação. Milhões de jovens ao redor do mundo estão hoje desafiando o domínio da hegemonia dos EUA e reorientando o debate sobre o direito humano fundamental de todos os povos oprimidos de viverem livres do imperialismo através do prisma da luta palestina.

      A dinâmica da reunião de 1960 se reflete nos debates atuais na ONU. O governo dos Estados Unidos continua a usar seu poder para reprimir a oposição e punir aqueles que desafiam sua agenda de política externa, particularmente no que diz respeito à Palestina. A decisão sem precedentes do Secretário de Estado Marco Rubio, em 29 de agosto de 2025, de negar vistos a toda a delegação palestina é um claro exemplo disso. Em uma declaração, Rubio deixou claro que os Estados Unidos usarão sua autoridade de vistos para promover sua agenda política, afirmando que "é do nosso interesse de segurança nacional responsabilizar a OLP e a Autoridade Palestina por não cumprirem seus compromissos e minar as perspectivas de paz".

      Este ato de isolamento diplomático, muito semelhante ao tratamento recebido por Fidel Castro em 1960, visa deslegitimar a causa palestina e impedi-la de ganhar mais espaço no cenário internacional. Apesar das contradições impostas pelo papel da Autoridade Palestina como única representante do povo palestino na ONU, é importante reconhecer que se trata de uma tentativa de silenciar um povo cuja própria existência está sob cerco. No entanto, a questão mais urgente é que a resposta da comunidade internacional ao genocídio em Gaza deve ir além de simples expressões de simpatia.  Embora vários países europeus e aliados dos EUA estejam dispostos a reconhecer formalmente o Estado palestino, este gesto por si só não será suficiente para pôr fim ao genocídio e à fome provocada pelo homem. A ONU deve ir além do reconhecimento simbólico e tomar medidas concretas. No mínimo, isso deve incluir sanções contra Israel e um esforço conjunto para pôr fim ao bloqueio de Gaza. Além disso, com base no direito internacional e nas acusações de crimes de guerra e crimes contra a humanidade, Netanyahu ou qualquer representante israelense deve ser impedido de comparecer à Assembleia Geral da ONU.  Como a ONU pode acolher de forma confiável indivíduos considerados responsáveis ​​por planejar e executar atrocidades em massa?

    A luta pela Palestina hoje, assim como a luta de Cuba contra o bloqueio, é uma luta pela autodeterminação. As lições do encontro entre Fidel e Malcolm X são claras: a solidariedade entre movimentos é uma arma poderosa contra o imperialismo. Sessenta e cinco anos depois, continuamos a nos inspirar naquele breve, mas monumental encontro no Harlem, aprendendo que a solidariedade não é um mero gesto, mas uma ferramenta vital na luta pela libertação.

https://cubaenresumen.org/2025/09/19/una-reunion-en-harlem-malcolm-x-fidel-castro-y-la-lucha-por-palestina   / Comitê Carioca



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