Por Sergio Rodríguez Gelfenstein
Por outro
lado, até o momento, a vacinação na América Latina e Caribe atinge 2,8% da
população, sendo que, no mundo, chega a 3,5%. Essa cifra é muito baixa, se
temos em conta que a população da região é 8,1% do total do planeta. Isso
mostra como o processo de inoculação se concentrou em muito poucos países.
Talvez nenhum
outro fato da história dos últimos 250 anos tenha evidenciado com tanta
transparência a verdadeira índole da sociedade capitalista, quanto o manejo da
pandemia e em particular a produção e distribuição de vacinas para enfrentar o
vírus.
Para os que
ainda não conseguem perceber como é pequena a importância que as empresas
transnacionais e as potências capitalistas dão à vida humana e à paz, basta
fazer uma revisão das condições impostas para o fornecimento das vacinas.
Sabe-se que o
laboratório estadunidense Pfizer intimidou governos latino-americanos nas
negociações, para vender-lhes a vacina contra a covid-19. Pfizer exigiu de alguns
países que ponham ativos soberanos, tais como edifícios de embaixadas e até
bases militares a título de garantia, para reembolsar os custos de qualquer
litígio futuro.
Esses
requisitos impostos na “negociação” levaram a Argentina e o Brasil a rechaçar
comprar a vacina dessa empresa. Não obstante, os acordos para obtê-la estão
cobertos de cláusulas de confidencialidade que se tornaram públicas pelo
escândalo que significa que a Pfizer exigisse uma série de indenizações contra
reclamações civis, tanto por efeitos adversos da vacina como por sua própria
negligência.
É assim que a
empresa estadunidense exige que sejam os governos os que paguem os custos
potenciais dos processos civis que possam ser movidos por negligência, fraude
ou malícia. Isso inclui a garantia das empresas que se protegem para o caso de
que, sob sua responsabilidade, seja interrompida a cadeia de frio, entreguem-se
vacinas incorretas ou estas se estragam. Também, para o caso de que seja
provocada a morte, incapacidade ou uma doença relacionada ao paciente. Ou seja,
os governos é que deverão pagar pelos erros das empresas, se apresentarem uma
reclamação formal ante a justiça.
Essas
condições, que põem em primeiro lugar os interesses das empresas e em segundo
plano a saúde dos cidadãos foram aceitas pelo Chile, Colômbia, Costa Rica,
República Dominicana, Equador, Panamá, Peru e Uruguai, governados pela direita
neoliberal, e lamentavelmente também pelo México, sem que se saibam com certeza
os termos dos acordos.
Por outro
lado, e numa atitude francamente distinta, o Ministério de Relações Exteriores
da China anunciou que seu país continuará promovendo uma distribuição
equitativa das vacinas, pondo em primeiro lugar a segurança e eficácia das
mesmas, pelo que vem instando as empresas produtoras do país a continuar as
pesquisas e desenvolvimento das vacinas com a estrita aplicação dos métodos
científicos e dos requisitos reguladores.
Do mesmo modo,
a China se comprometeu a tornar as vacinas contra a covid bens públicos
mundiais e proporcionou ou está proporcionando ajuda em vacinas a 53 países, ao
mesmo tempo em que laboratórios chineses exportaram ou estão exportando os
medicamentos a outros 27 países, entre eles, 11 da América Latina, sem impor
nenhum tipo de condição.
Nesta
situação, a colonialidade e o eurocentrismo permearam os debates acerca da
“nova normalidade”. Para a América Latina e em geral para os povos do Sul,
falar disso é rebobinar o discurso da dominação e do controle das potências.
Desta maneira, “nova normalidade” tem relação com um discurso que é próprio do
Norte, sua segurança e estabilidade em detrimento do Sul, que de novo é visto como
um estorvo para a conquista dos objetivos traçados por Washington, Bruxelas ou
Londres.
Dito de outra
maneira, o conceito de “nova normalidade”, para uns, está associado ao de
“risco” para eles, o que implica novos métodos de controle e exploração para a
maioria do mundo. Assim, essa ideia estabelece a necessidade de sobrevivência
dos Estados Unidos e Europa como potências dominantes a qualquer custo,
incluindo o da vida de milhões de cidadãos.
Esse contexto
levou a um reposicionamento da globalização sob outra perspectiva, uma vez que
o vírus se instalou em todas as latitudes e longitudes do planeta, mostrando a
putrefação nas entranhas do sistema, quando, sem importar-se com a saúde da
humanidade, concentraram em 10 países mais de 90% das vacinas produzidas até
agora, inclusive chegando a ter, em alguns países, como o Canadá, quantidades 5
vezes superiores às necessidades de sua população.
A globalização
da pandemia fez que os povos dos países do Norte sentissem, pela primeira vez,
a miséria das políticas de seus governos, percebendo os medos, as angústias e
as ameaças cotidianas que se vivem nos países do Sul. Isso, sem chegar aos
extremos que expressam, por exemplo, as políticas do governo dos Estados
Unidos, que proíbe os laboratórios - sob risco de sanções – de vender vacinas à
Venezuela e impede que os recursos roubados e retidos do país possam ser
utilizados para a obtenção da vacina.
Hoje, já é
possível predizer que ocorrerão mudanças importantes em termos geopolíticos, as
quais, já estando em curso no início de 2020, foram aceleradas pela pandemia. A
mais importante de todas é o fortalecimento da potencialidade econômica de
China e sua crescente capacidade de inserção na problemática mundial.
Por outro
lado, a pandemia tornou evidente a distância entre a periferia e os centros de
poder mundial, quando estes, longe de aproveitar o nefasto evento como lugar de
encontro humanitário em proteção da vida, por meio da cooperação e da
aproximação, privilegiaram os interesses de lucro, que anunciam um aprofundamento
maior das diferenças, num mundo em que o sistema capitalista mostrou sua total
incapacidade de conduzir o processo de enfrentamento, luta e derrota do vírus.
Nesse
contexto, o sistema multilateral pôs em evidência notórias imperfeições e
insuficiências, começando pela reação da própria Organização das Nações Unidas
(ONU), que se mostrou incapaz de manejar e conduzir o processo, seja por
fraqueza, subordinação ou temor à fúria das potências e dos laboratórios que
veem seus negócios diminuírem.
Da mesma
forma, os únicos blocos regionais e sub-regionais que foram capazes de
articular políticas conjuntas são os asiáticos, o resto se perdeu em atitudes
particulares dos governos e em acordos secretos que ocultam cumplicidade,
subordinação e defesa aos grandes laboratórios transnacionais. Neste aspecto,
especialmente, a América Latina ficou em primeiro lugar – mais uma vez - em
mostrar as debilidades de sistemas de saúde marcados por práticas neoliberais
que expõem a cara visível de oligarquias que não economizam em sacrificar
vidas, quando se trata de defender seus mesquinhos interesses de grupo ou
setor.
A verdade é
que o manejo da pandemia, as prioridades na atenção aos cidadãos para a
proteção de sua vida, a decisão sobre a utilização de recursos de todo tipo
para enfrentar o vírus e a produção e distribuição da vacina deixaram claros os
fundamentos filosóficos com base nos quais os governos se preocupam ou não em
garantir o direito à saúde e à vida de todos os cidadãos, como manda a
Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU.
(Missão Verdade)
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