Tradução: Marcia Choueri*
Na noite de sábado passado, a televisão cubana transmitiu o filme Víctor
Frankenstein, uma das muitas versões cinematográficas e televisivas do
romance da escritora inglesa Mary Shelley. A história do homem que, juntando
partes de cadáveres, cria um novo ser, que acaba sendo um monstro que se rebela
contra o seu criador, continua motivando realizadores do cinema e televisão, e
sua «lição moral», talvez sem intenção de sua autora literária, não deixa de se
tornar realidade na política contemporânea. A mais recente das possíveis
associações políticas com a história frankensteinana pode ser extraída do
ocorrido nesta mesma semana, nas eleições de meio período, no estado
norte-americano da Flórida, em que o Partido Republicano obteve um sonoro
triunfo.
Por mais que o presidente Biden tenha se esforçado para agradar a extrema direita que controla o voto cubano-americano em Miami, continuando as políticas de seu predecessor Donald Trump, de tratar de asfixiar Cuba, e contrariando assim suas próprias promessas de campanha eleitoral pela Presidência, o voto desse setor foi de forma incisiva para os candidatos republicanos daquela zona. A frase do candidato vitorioso ao governo do estado, o republicano Ron De Santis, resume o “êxito” do galanteio trumpista realizado por Biden em uma cidade onde mais de 50% dos votantes são cubano-americanos: “Obrigado, Miami”.
Desde as eleições de 2002, quando Jeb Bush, o irmão do então
presidente George Bush, conquistou esse governo, o Partido Democrata havia
controlado esse cargo. Também por esse estado, venceu o senador Marco Rubio,
quem em sua campanha se jactou de ser o autor das políticas de Trump contra
Cuba, as quais ele garante que Biden mantém “por medo ao exílio cubano”. Também foram reeleitos em Miami os três representantes
republicanos na Câmara, que se caracterizam pela linha dura anticubana: María
Elvira Salazar, Mario Díaz-Balart e Carlos Giménez.
Mas o que poderíamos denominar a não escrita «Lei Frankenstein» não afeta só os Democratas na Flórida: que os partidários das políticas trumpistas contra Cuba tenham vencido não quer dizer que Donald Trump tenha garantido ali o respaldo a uma candidatura presidencial republicana em 2024. O agora governador republicano Ron De Santis é um candidato que triunfou sem o apoio do ex-presidente e já se mostra como um aspirante à indicação republicana para a Casa Branca, enfrentando o magnata, e para isso terá de contar com esse aparato de pressão, extorsão e propaganda política que está em mãos da extrema direita cubano-americana de Miami.
O paradoxal é que foi o governo de Biden que contribuiu para manter a vitalidade desse aparato, por duas vias:
1. A decisão da
Casa Branca de manter a política trumpista de máxima pressão contra Cuba,
combinada com a pandemia de covid-19 – quando até o oxigênio medicinal foi
recusado à Ilha pela administração Biden –, com a crise econômica global
subsequente e as consequências da guerra na Ucrânia, fatos como os distúrbios
de julho de 2021 e os protestos em algumas localidades no segundo semestre de
2022, devido aos cortes de eletricidade, agudizados cm a passagem do furacão
Ian, alimentaram nesse setor a percepção de que, quanto mais duro se aperte,
mais rápido cairá a Revolução cubana, e quem melhor para fazer isso, que os
políticos que nos Estados Unidos acusam os Democratas de serem tão socialistas
e comunistas como o governo de Havana.
2. O governo de Biden manteve o tradicional financiamento milionário a meios na internet para a guerra psicológica contra Cuba, que chegou, durante as duas últimas décadas, ao sustento de líderes de opinião que constroem percepções anticomunistas extremas numa parcel do eleitorado de Miami. Mais recentemente, como revela uma pesquisa da Universidade da Flórida, ganhou influência nas percepções dos cubano-americanos sobre Cuba, um grupo de pessoas que lançam nas redes sociais digitais um discurso anticomunista de ódio ainda mais extremo, organizam e financiam ações terroristas na Ilha, tais que, se fossem contra a sociedade estadunidense, seriam combatidas pelos organismos norte-americanos de aplicação da lei, mas que gozam de total impunidade por parte das autoridades federais. Vários desses «influencers» têm vínculos orgânicos com políticos republicanos eleitos neste 8 de novembro na Flórida.
Foi um republicano, Ronald Reagan, que, junto com o terrorista Jorge Más Canosa (foto) e sua Fundação Nacional Cubano-Americana, insertou na institucionalidade estadunidense os cubanos de Miami que vinham das organizações violentas criadas pela CIA nos anos sessenta e setenta do século XX para a guerra suja contra Cuba. O dinheiro federal continuou fluindo para essa mesma guerra, agora mais concentrada na propaganda via internet. Sem embargo, quando o governo de Barack Obama, sem abandonar esses financiamentos nem objetivos, assumiu uma política para Cuba de contato people to people, que desafiou o velho Frankenstein de Miami, ganhou o voto cubano-americano, igual a sua sucessora como candidata Democrata, Hillary Clinton.
El people to people, longe de assustar o governo de Havana, aterrorizou os extremistas sucessores de Más Canosa, que encontraram em Trump alguém disposto a desmontá-lo e a fazer o que quisessem, com o fim de ganhar a Casa Branca. Apareceram assim “ataques sônicos comunistas”, negados agora até pela CIA, para justificar o fechamento do consulado estadunidense em Havana, o que estimulou uma rota migratória irregular por terra e por mar, que colocou a Casa Branca ante um grave problema. Esse fluxo migratório multiplicado não se resolve retomando tardiamente os acordos migratórios com Cuba, como acaba de hacer, contra a própria vontade, a atual administração, sua base material são as medidas do bloqueio exacerbado por Trump, que Biden mantém intactas. Junto com os «ataques sônicos», os médicos cubanos na Venezuela foram transformados, por obra e graça do Departamento de Estado trumpista, em militares prontos para invadir a Colômbia, mas hoje os presidentes de ambos os países conversam amistosamente, enquanto enviados especiais viajam de Washington a Caracas em busca de um petróleo cada vez mais caro e distante, graças à aventura ucraniana de Biden e seu filho Hunter.
O mundo muda, se reconfigura. Os Estados Unidos, ante uma aliança russo-chinesa que ganha influência, necessitam garantir-se numa América Latina que não compartilha sua política em relação a Cuba. Três dos países com mais peso político e econômico na região (México, Argentina e Colômbia) criticam abertamente as políticas trumpistas de Biden para a Ilha, e a partir de janeiro um Lula latino-americanista e amigo de Cuba ocupará a presidência do Brasil, com mais peso ainda que os três anteriores juntos, para fechar um quadro de influencers no governo, e não nas redes sociais, que colocam importantes desafios a Washington. Biden manterá, apesar disso, a política trumpista contra Cuba, só para agradar um Frankenstein que o despreza nas urnas e no discurso?
Vítima até agora de uma espécie de Síndrome de Estocolmo miamense, o atual ocupante da Casa Branca acaba de declarar que quer voltar a ser presidente em 2024, mas uma pergunta possível é se poderá ser, sem desafiar o Frankenstein republicano e mafioso do Sul da Flórida, que não se esconde para gritar que o Presidente tem medo dele.
(Esta é uma versão ampliada de um artigo publicado originalmente
em Al Mayadeen).
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