Amigo pessoal de Fidel Castro, o teólogo brasileiro diz que a visita de Obama à ilha pode apressar o fim do bloqueio econômico, mas teme o tsunami capitalista
Quando o então presidente estadunidense, Calvin
Coolidge, desembarcou no aeroporto José Martí, em Havana, em janeiro de
1928, e foi recebido pelo seu colega, Gerardo Machado, ele não poderia
imaginar que a pequena ilha viveria, 30 anos depois, uma revolução
socialista, que os Estados Unidos se tornariam seu ‘maior inimigo’ e que
uma nova visita de um presidente americano em exercício só ocorreria 88
anos depois.
Neste domingo (20), o presidente Barack Obama
desembarca na ilha em uma visita histórica em meio a uma tentativa de
retomada de relações entre os dois países, anunciado em dezembro de
2014. Essa aproximação caminha a passos lentos, mas, com a visita de
Obama, pode ganhar um impulso.
“Barack Obama vai a Cuba agora e
pode ser que o Congresso americano decida suspender o bloqueio econômico
como um gesto de proximidade. Pode ser. Não depende do Obama, depende
do Congresso”, avalia Frei Betto, um dos principais apoiadores do regime
cubano e amigo pessoal de Fidel Castro.
À Calle2,
o teólogo diz que a reaproximação entre os dois países somente será
benéfica quando o bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos cair
(“o bloqueio é um genocídio”), revela uma conversa pessoal com Fidel
sobre os esforços de Obama e conta um temor: o de que Cuba acabe por
“virar uma pequena China” − um governo socialista com uma economia
capitalista.
Apesar de o líder da revolução ter publicado um
artigo dizendo que Cuba e Estados Unidos seriam “sempre inimigos”, Betto
assegura que Fidel Castro receberá, pessoalmente, Obama.
“Você vai ver a
foto do Fidel com o Obama juntos. Fidel sempre recebeu qualquer um. Até
os Rockfeller. Com um detalhe: de cada dez inimigos que ele recebeu,
nove saíram falando bem dele. O Fidel tem um carisma − que, aliás, o
Lula tem também − sedutor. Os caras chegam lá achando que vão falar um
monte pra ele e saem com outra postura”.
O
Papa Francisco foi a Cuba duas vezes em seis meses. É difícil recordar
uma presença papal em qualquer país do mundo em um período tão curto.
Tem algo em especial?
Tem, principalmente porque Cuba é
um país socialista que se abriu à liberdade religiosa a partir dos anos
1980. Nesse processo, há um passo importante que é a publicação da
entrevista que o Fidel Castro deu a mim e que resultou no livro Fidel e a Religião. Foi
a primeira vez que um líder comunista no poder falou positivamente do
fenômeno religioso, o que promoveu uma grande abertura. Embora Cuba não
seja um país católico, tem uma religiosidade profunda: uma mistura de
tradição cristã com religiões de origens africanas. É como na Bahia. E
mais do que isso: Cuba exerce um papel emblemático nesse planeta. Mil
coisas passam no Brasil e ninguém fala nada.
Qualquer coisa que acontece
em Cuba repercute lá na Oceania. É impressionante como eles
conquistaram esse fator emblemático. O Papa teve uma bela ideia de
reatar as relações dos Estados Unidos com Cuba e, agora, de se encontrar
com o Patriarca da Igreja Ortodoxa Russa, que sempre foi amigo de Cuba,
em Havana, porque ele não queria que esse evento fosse nem em Roma, nem
em Moscou e nem em um país cristão do Ocidente. Ele queria um país
neutro. Foi um marco histórico. Um presente para Cuba, que passa por
muitas mutações.
Que mutações o senhor enxerga?
Há
um empenho do governo e do povo para que haja um aprimoramento do
socialismo, mas todos sabem que vai acontecer um choque forte entre o
tsunami consumista com a austeridade cubana quando o bloqueio econômico
for suspenso.
Ninguém sabe quando isso vai acontecer, mas ele é
insustentável. As relações diplomáticas não vão amadurecer com a
persistência do bloqueio e da Base de Guantánamo.
Barack Obama vai a
Cuba agora e pode ser que o Congresso americano decida suspender o
bloqueio como um gesto de proximidade. Pode ser. Não depende do Obama,
depende do Congresso, mas o próprio Donald Trump − que pode ser o futuro
presidente dos Estados Unidos − e a Hillary Clinton já disseram que são
contra o bloqueio, ainda que cada um por suas razões. O Trump por
razões econômicas óbvias.
O Raúl Castro quer mesmo deixar o poder?
Ele
disse no último congresso do partido que ficaria no cargo por cinco
anos. Isso foi em 2013. Ou seja, em 2018 completa o prazo. O sucessor já
está indicado: o Miguel Diaz-Canel, que é o vice-presidente…
O primeiro líder cubano que não viveu Sierra Maestra. Exatamente.
Modifica a estrutura do regime?
Claro.
Uma coisa é o carisma impregnado dos irmãos Castro, outra é o coitado
do Diaz-Canel, que vai ter que aguentar representar um país cuja
história ele não está embutido. Ele pode estar intelectualmente
embutido, mas não na prática. Com um detalhe: vai ter que conviver com
sobreviventes de Sierra Maestra. Tem alguns sobreviventes da Revolução
Cubana que estão com mais de 80 anos, porém gozam de boa saúde. Mas
enquanto Raúl e Fidel estiverem vivos, acho que não precisa temer.
Salienta-se também que o povo cubano é muito bem alfabetizado e, para
além, é o único país socialista onde não há nenhuma manifestação pública
significativa contra o regime.
Existem aquelas Damas de Branco, que são
uma meia dúzia de esposas de presos comuns que querem passar a ideia de
que seus maridos são presos políticos. Quando o Francisco foi à Cuba no
ano passado − e eu estava lá − o cardeal de Havana [Jaime Lucas Ortega]
deu uma entrevista à imprensa internacional e, em um momento, um
repórter estadunidense perguntou: “E os presos políticos?”. E o cardeal
respondeu: “Aqui não há presos políticos”. E é isso: todos os presos
políticos foram soltos.
Agora, se uma pessoa, por razões políticas,
colocar uma bomba em alguma rua de Havana e matar alguém, é um delito
comum.
Nas conversas com a população cubana, nota-se uma
dualidade de opiniões sobre a aproximação com os Estados Unidos. Há quem
comemore e quem ache que se relacionar com o pior inimigo significa o
fim da manutenção do regime, que também se ampara nesse conflito
ideológico. O senhor tem um lado nessa dualidade?
Não. O
bloqueio econômico é genocida. Quem é contra o fim do bloqueio não tem
ideia do dano que ele causa e causou ao povo cubano. A expressão que os
irmãos Castro usam é exatamente essa: um genocídio. Os Estados Unidos
são o maior mercado do mundo e, por que não, para Cuba. Vou te dar um
exemplo: em fevereiro, o filho mais velho do Fidel, o Fidelito Castro,
me levou a conhecer o laboratório de nanotecnologia de Cuba, uma coisa
fantástica que está sendo feita. E durante a visita ele me contou que o
maior entrave para esse desenvolvimento no país é que eles não podem
comprar nenhum equipamento que tenha componentes americanos. Quase todos
os equipamentos do planeta tem uma porca, um parafuso, uma placa, um
chip produzidos nos Estados Unidos. Nessa visita também vi um computador
maravilhoso que faz próteses de audição para crianças. Detalhe: todos
os bebês que nascem em Cuba passam, no primeiro mês, por um exame de
surdez, porque, se você detecta no início, evita a gravidade da surdez
e, portanto, que a criança fique muda. Esse exame é feito por um
aparelho feito por um artesão, por causa da necessidade de medir o
ouvido de cada bebê, por exemplo. A média de um artesão cubano de
aparelhos de audição era de três por dia. Hoje, com o computador,
produzem cem aparelhos em uma hora. Eles fazem a prótese por meio de uma
impressora 3D. É impressionante.
Mas, para desenvolver, precisa de
equipamentos que estão nessa categoria de componentes americanos. Por
isso que, para eles, é muito importante o fim do bloqueio.
Um
dos opositores do governo cubano, Manuel Cuesta Morúa, disse
recentemente que, quando o bloqueio acabar, vai ser tão fácil fazer
negócios em Cuba que o socialismo vai acabar. É uma visão sensata?
É
a esperança deles. Eu espero que ele não esteja certo. Acho que é
possível manter uma ideologia socialista no governo e, inclusive, eles
já tomaram várias medidas observando o problema da China. Entre elas, já
disseram que não vai entrar Mc Donald’s, nada dessas coisas. O que vai
entrar são instituições, como hotelaria, empresas, etc., tudo com 51% de
domínio cubano e 49% de domínio estrangeiro. Nada pode ter maioria de
capital privado e não vai ter bolsa de valores, especulação e outras
características capitalistas.
Quando foi anunciada a
aproximação entre Cuba e Estados Unidos, Fidel Castro publicou um artigo
dizendo que eles seriam “sempre inimigos”. O que ele está achando
pessoalmente da visita do Obama a Havana?
Os cubanos não
são bobos. Imagina o tanto de dinheiro que o Obama vai levar pra Cuba
com a visita dele. Só de jornalistas vão 2.500 pessoas. Pessoalmente,
ele me disse o seguinte: “O Obama está mudando os métodos e não os
objetivos. Ele precisa mudar os objetivos”. Mas ele vai ser muito bem
recebido lá.
Alguma possibilidade de se encontrarem?
Eu
tenho certeza que Obama vai visitar Fidel Castro em sua casa, assim
como foi com o Papa, com o Patriarca da Igreja Ortodoxa Russa, como o
presidente da França, François Hollande, como o primeiro-ministro
italiano, Mateo Renzi. Isso é prestígio para Cuba e ainda mais porque
não foi o Raúl que pediu para o Obama ir a Cuba, mas foi o próprio Obama
que pediu para ir a Havana. Tem americano com ódio do Obama por causa
disso.
Fidel receberia o Obama?
Claro.
Tenho absoluta certeza disso. Você vai ver a foto do Fidel com o Obama
juntos. Fidel sempre recebeu qualquer um. Até os Rockfeller. Com um
detalhe: de cada dez inimigos que ele recebeu, nove saíram falando bem
dele. O Fidel tem um carisma − que, aliás, o Lula tem também − sedutor.
Os caras chegam lá achando que vão falar um monte pra ele e saem com
outra postura.
Uma última pergunta mais geral: a eleição
de Maurício Macri, na Argentina, as derrotas do chavismo no Legislativo
venezuelano e do Evo Morales no último referendo na Bolívia indicam que o
modelo progressista-desenvolvimentista latino-americano se esgotou?
Esse
modelo está perdendo espaço porque não soube se consolidar por falta de
um trabalho de organização e politização popular. Se acreditou muito em
palavras de ordem, grandes mobilizações, carismas pessoais, mas não se
fez um trabalho efetivo de organização popular e alfabetização política.
Fui à Venezuela, à Argentina, à Bolívia, ao Equador, e em todos esses
países as televisões estatais não cumprem a função de dar outra ótica
para a população. Continua existindo uma influência norte-americana
muito grande: muito filme de Hollywood, muita música enlatada, muita
bobagem. É muito complicado para mim. Não que não possa ter. Não quero
um realismo socialista, mas é preciso saber dosar. Não se espera que um
povo seja politizado se ele se envenena com enlatados hollywoodianos.
Isso emite valores, propostas, não há nada neutro ali. Por falta de
consistência e dos fracassos econômicos constantes, esse modelo se
esgotou.
Fonte: CALLE2VENCEMOS !!! VENCEREMOS !!!
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