21 de out. de 2022

A CRISE DE OUTUBRO E O SEGREDO MAIS BEM GUARDADO DA INTERNET

                                       

Por: Juan Alfonso Fernández González*

Tradução: Marcia Choueri

Este ano  a Crise de Outubro completa meio século. E, apesar de terem escrito muito sobre isso, pouca gente sabe que esse acontecimento histórico foi parcialmente responsável pelo surgimento da internet.

No final do ano de 1962, o presidente dos Estados Unidos, John Kennedy, e seu Secretário da Defesa, Robert McNamara, estavam muito insatisfeitos com os problemas de comando e controle que tinham enfrentado durante a Crise de Outubro, particularmente pela impossibilidade de obter e analisar dados em tempo real e interagir com os comandantes militares no terreno.

Para enfrentar esse problema, colocaram o cientista Joseph Carl Robnett Licklider à frente do recém criado Escritório de Técnicas para o Processamento da Informação (IPTO) da Agência de Projetos de Pesquisa Avançada (ARPA), do Departamento de Defesa dos Estados Unidos. O objetivo era trabalhar no chamado “Problema da Segurança Estratégica do Ocidente”, relativo à sobrevivência da cadeia de comando, ante um ataque nuclear inesperado.

Licklider buscou ajuda nas mais importantes universidades norte-americanas e pensou em interconectar todas elas por meio  de uma rede de computadores, que ele chamava de “Intergalactic Computer Network”, a qual posteriormente receberia o nome oficial de ARPAnet, a precursora da internet. E, como se diz, o resto é história.

 Mas não é este o segredo mais bem guardado da internet, talvez seja o segundo. O que está em primeiro lugar é o da iniquidade no pagamento da conexão internacional à internet.


Qual é o problema?

Se duas ou mais organizações participam na prestação de um serviço pago por um terceiro, o mais natural é que a entrada relativo a esse pagamento seja compartilhada de alguma forma entre as referidas organizações. Isso ocorre, por exemplo, no serviço de telefonia de longa distância internacional, em que existem acordos para compartilhar a entrada pelos pagamentos das ligações, segundo os quais o operador de telecomunicações no país que origina a ligação, e que cobra por ela, realiza um pagamento compensatório ao operador no país destino da ligação.

Entretanto, na internet, não acontece assim: os provedores de serviços de internet dos países em desenvolvimento pagam o custo total dos enlaces de interconexão com a internet, enquanto os operadores de países desenvolvidos utilizam essas facilidades para encaminhar seu tráfego sem pagar nada em troca. Um exemplo, retirado de um estudo sobre essa situação no continente africano permite explicar melhor: “Quando um usuário final no Quênia envia um e-mail a um destinatário nos Estados Unidos, é o provedor de serviço de internet queniano quem assume o custo da conectividade internacional do Quênia aos Estados Unidos. No caso inverso, se um usuário final estadunidense envia um e-mail ao Quênia, também é o provedor de serviço de internet queniano quem assume o custo da conectividade internacional, e é o usuário final queniano que, em última instância, sofre a pior parte de ter de pagar subscrições mais altas.”[1]

Esta situação é tão escandalosa, que um artigo da BBC a denominou: “O grande roubo africano da internet”. [2] A quantidade de dinheiro que vai, por este motivo, dos países subdesenvolvidos para os desenvolvidos é tão grande, que um artigo publicado pela União Internacional das Telecomunicações (UIT) conclui, do mesmo modo que o estudo citado anteriormente, que a situação estabelece o paradoxo de que “os países pobres estão subsidiando os ricos”. [3]

Essa situação provocou um impacto negativo nos países em desenvolvimento, onde os pagamentos provenientes dos mecanismos de liquidação que se aplicam à telefonia internacional constituíram tradicionalmente uma fonte de receitas que ajudou a financiar o investimento na infraestrutura de telecomunicações desses países. A UIT estima que, entre 1993 e 1998, os fluxos diretos da liquidação dos pagamentos de telecomunicações dos países desenvolvidos para os países em desenvolvimento totalizaram cerca de 40 bilhões de dólares. Segundo dados do Banco Mundial, esta receita que os países subdesenvolvidos recebiam está desaparecendo, à medida que mais tráfego de telecomunicações se move para a internet. [4]

Esta situação foi discutida em diversos organismos internacionais, sem que tenha havido, até o momento,  alguma solução para essa discriminação que os países subdesenvolvidos sofrem para conectar-se à internet.

Por exemplo, em outubro de 2000, a Assembleia Mundial de Normalização das Telecomunicações da UIT aprovou a recomendação D.50 sobre este assunto. O propósito da recomendação era estabelecer os princípios para a negociação de acordos para a transmissão internacional de tráfego de internet e reconhece também a necessidade de compensações entre os provedores que levam o tráfego. Entretanto, como seu nome indica, essa recomendação não é um acordo vinculante, e por essa razão não foi aplicada.

A Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (CMSI) pronunciou-se sobre o tema em 2003, declarando que: “Os custos de trânsito e interconexão de internet que resultem de negociações comerciais devem orientar-se por parâmetros objetivos, transparentes e não discriminatórios, tendo em conta o trabalho em curso sobre o tema.” [5] Este chamado também não foi ouvido.

Os anos passam, e este tema no só não foi resolvido, senão que se estabeleceu como outro componente mais da injusta ordem econômica internacional vigente, cujo nefasto impacto recrudesceu por causa da globalização neoliberal e que torna impossível a superação da chamada brecha digital, que cresce e aprofunda a desigualdade e a polarização entre o bem-estar e a pobreza.

 

É preciso continuar lutando

O desenvolvimento das Tecnologias da Informação e Comunicações (TICs), entre as quais se encontra a internet, coloca importantes desafios, mas também oferece grandes oportunidades aos países em desenvolvimento.

Elas têm o potencial de brindar novas soluções aos problemas do desenvolvimento, particularmente no contexto da globalização, e podem promover o crescimento econômico, a competitividade, o acesso à informação e aos conhecimentos, a erradicação da pobreza e a inclusão social.

É por isso que há uma urgente necessidade de continuar lutando para eliminar os obstáculos que os países em desenvolvimento enfrentam para ter acesso às novas tecnologias, como a insuficiência de recursos, infraestrutura, educação, capacidade, investimento e conectividade, bem como os relacionados à propriedade intelectual e à transferência de tecnologia.

E, entre esses obstáculos, está o da iniquidade no pagamento da conexão internacional à internet, um de seus segredos mais bem guardados.

***

Referências:

[1] “The Halfway Proposition,” “Background Paper on Reverse Subsidy of G8 Countries by African ISPs,” Johannesburgo, África del Sur, (Octubre 19, 2002).

[2] “The Great African internet Robbery,” BBC News, (Abril 15, 2002).

[3] “International internet Connectivity – Are Poor Countries Subsidizing the Rich?”, ITU News Magazine, N° 03, (Abril 2005).

[4] “Identifying Key Regulatory and Policy Issues to Ensure Open Access to Regional Backbone Infrastructure Initiatives in Africa,” El Banco Mundial, (Diciembre 9, 2004).

[5] “Plan de Acción de Ginebra, Primera Fase de la CMSI” párrafo C2. 9., Ginebra, (Diciembre 12, 2003).

 

* Assessor no Ministério da Informática e Comunicações (MIC) e Professor Adjunto na Universidade das Ciências Informáticas (UCI)


 Publicado por La pupila insomne


                            


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